domingo, 24 de agosto de 2025

31- A incrível vida do casal ganhador do euromilhões

 

Digamos que é mesmo muito dinheiro e que, pelo que pensava Francisca quando há pouco a deixámos na sua cama da casa de Pedra de Ouro (Aproveitamos para anunciar que a casa está à venda – 965347974) – a maior parte dele descansará por muitos anos nos cofres virtuais da banca capitalista.

Dentro de dias, Francisca chegará de malas cheias a Vila Facaia, voltará a juntar os trapinhos com Jacinto, viverão como dois emigrantes que regressaram de vez do Canadá ou da Austrália - já nem se recordam de onde disseram que foi! - com um valente pé-de-meia.  Juntos, cuidarão da sogra e do cunhado, viverão.

Para trás, ficará a casa de Vale dos Ovos entregue às silvas, a casa de praia entregue a uma imobiliária, o papa-reformas vendido a um pescador. Para trás, só não ficarão os bancos porque eles, tal como Deus, estão em toda a parte.

Dito e feito, vamos agora viver no Pinhal Interior (digo Eucaliptal Interior), casamento renovado e casa nova com Jacinto, amanhã vamos a Pedrogão ao Registo, no outro dia podemos ir à Sertã comer maranhos, ontem foram à praia fluvial das Rocas, foram a banhos, sempre de táxi, estão bem na vida - vê-se! -  trabalharam para isso toda a vida - pensam os santos da terra! -  temos de ir com a velhota a um médico à Pampilhosa, amanhã vamos à feira a Castanheira comprar um pijama para o teu irmão, ontem foram a um jantar da Associação, deram um generoso contributo, hoje estão numa de descanso, estão bem na vida mas…

Mas, há um erro grave que aqui se cometeu. Se fosse da parte do autor, haveria perdão, mas não, são Francisca e Jacinto que estão a cometer uma falha imperdoável! De tal modo grave que até o próprio autor se está a sentir mal com a situação:

Gaita!Filha é filha! Resumir a relação entre pais e filhos a comunicações telefónicas já é trágico, agora ficar-se por um telefonema pelo Natal, não ter um contacto da filha, não cabe na cabeça de ninguém, não tem perdão, digamos que deita por terra todo o argumento porque se traduz numa história mal contada. Como se não bastasse, estamos a falar da pobre Lúcia, a infeliz que é rica, por afinidade,sem o saber.

Com a consciência avivada por este desvio da narração, o nosso casal abriu a conversa sobre o assunto, com uma seriedade e uma profundidade que nunca lhe tinha dedicado.

- Não tarda estará aí o Natal! E se ela não liga! Ainda nem chegámos ao verão! É muito tempo!

- De certeza que o Abílio do café, que conhece toda a gente, nos há de arranjar o contacto do Paleco ou de outro que por lá ande, no Luxemburgo!

Por falar em Abílio, contrariamente à nossa manifesta intenção, temos de voltar a Vale dos Ovos e ao Café da Estação, porque acaba de entrar nele, em passo diligente, uma jovem mulher visivelmente transtornada.

- O que é que se passa Abílio? Quis fazer uma visita surpresa aos meus pais e cheguei lá a casa e está tudo ao abandono?

Falamos obviamente de Lúcia. No carro estacionado no parque da estação, ficaram a filha adolescente e o marido, adiante-se já, novo marido, que o outro correu com ele, já o devia ter feito há muito tempo, um bêbado que derretia tudo quanto ganhavam, este sim, um italiano que a ajudou a endireitar a vida.

Ao vê-la tão aflita, Abílio atalhou:

- Tem calma cachopa! Eles estão bem! Quer dizer, a tua mãe está!...

- Que aconteceu ao meu pai? Alguma tragédia?

- Tragédia não direi, está preso!

- Está preso onde?

- Na prisão.

- Matou alguém?

- Não, não se sabe bem o que ele fez.

- E a minha mãe?

- Como te disse a tua mãe está bem, parece que está a viver lá para os lados da Vieira! O Jápintas e o Pisca-pisca já lá foram, sabem onde é. Mas o melhor mesmo, é ligares à tua mãe! Sei que ela queria ligar-te mas, como eras sempre tu a ligar-lhe, nunca apontou o teu número. Há muito que aguarda por um telefonema teu.

- Obrigado Abílio, é isso mesmo que vou fazer!

E dizendo isto, Lúcia saiu no passo em que entrou, dirigiu-se ao automóvel e ao condutor:

- Arranca, eu indico-te o caminho, vamos para a praia.

- O quê?!

- Já te explico, agora tenho de fazer uma chamada!

Quando Francisca reconheceu a voz ao telefone, estremeceu de contentamento e, numa expressão contente, fez um aparte para o Jacinto:

- É a Lúcia!...

À medida que a conversa ganhou rumo, Jacinto foi observando, pelo zizaguear das caras que a companheira ia fazendo, que havia surpresas e novidades. Estava em Portugal? Vinha a caminho? Praia, Vale dos Ovos, Abílio, prisão. Novo marido?!...

Na outra ponta da comunicação telefónica, também o novo marido tinha as orelhas erguidas, mantendo calma a condução e espreitando, de quando em vez pelo retrovisor, para sondar a atenção da enteada. Não estava em casa? Então iam para onde? Não estava preso? Uma longa história, segredo, calma, praia, hotel. Está tudo bem?!...

 Francisca não podia esconder à filha que o pai nunca estivera preso. Também não poderia, pelo menos para já, revelar-lhe onde moravam. Era obrigatório que se encontrasse com ela o mais rápido possível, mas não tão rápido que não tivessem tempo para preparar explicações sobre os acontecimentos dos últimos meses. Isto é, Francisca foi desenrascando a situação como pôde. Dizer à Lúcia para se instalar com a família no hotel da Vieira, que não se preocupasse com as despesas, era, ao fim e ao cabo, uma forma de iniciar a grande revelação que teria de acontecer. Obviamente que a filha ficou muito confusa com o discurso da mãe – será que ela está bem? Pensou por várias vezes – e muito ansiosa pelo
reencontro da família. Os emigrantes foram dormir ao hotel da Vieira e aguardariam pelo dia seguinte para se reunirem com o casal. 


1 comentário:

Tintinaine disse...

Neste episódio a coisa animou um pouco! Até me fez recordar um livro do Daniel Silva!