quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Quarto 11

(Se não leu o Quarto 1, o Quarto 2, o Quarto 3, o Quarto 4, o Quarto 5, o Quarto 6, o Quarto7, o Quarto 8, o Quarto 9, o Quarto 10, este quarto não faz sentido)
Quando regressei das férias grandes a casa andava sorumbática. Gina e Tânia tinham chumbado, Virgolino não dava sinais de si e dona Graça fartava-se de trabalhar para manter a casa farta. Dona Graça bem me aconselhara a arranjar um colega para partilhar o quarto, caso contrário teria de arranjar ela um novo hóspede que poderia não ser do meu agrado. Cheguei a andar com um anúncio, na minha pasta de estudante, com os dizeres “Procura-se companheiro de quarto” mas só apareceram candidatos do sexo oposto o que, nas circunstâncias, não seria possível. Uma coisa era certa, ela precisava de mais uma renda para equilibrar o orçamento!
Uma noite cheguei tarde de noitada com uns amigos e as mulheres da casa já estavam na cama. Quando entrei no quarto, surpreendeu-me um intenso cheiro no ar, um vulto dormitando na cama do lado e um saco com umas roupas à entrada. Acordou e trocámos boas noites. Era o novo hóspede, um rapaz com meia dúzia de anos a mais que eu, com barba de três dias, sem sorrisos mas sem antipatias e, seguramente, com cara de quem não era estudante nem operário.
Puxou meio corpo para fora das mantas, ajeitou o travesseiro atrás das costas e ficou sentado ao cimo da cama enquanto eu, como mais velho no aposento, ditava partilhas de roupeiro e hábitos meus. Ele, com a cabeça acenava concordâncias enquanto enrolava uma mortalha. Quando acendeu o isqueiro e deu a primeira passa o cheiro a erva denunciou-o logo.
- Queres dar uma passa?
Acedi à oferta, reconhecendo nessa partilha o gesto necessário de quem sabe que, para se empreenderem certos relacionamentos, devem existir actos simbólicos. O boi bateu o suficiente para estarmos para ali, cada qual na sua cama, a falar por uma hora. Luís era dos subúrbios do outro lado da cidade e arrendara o bar do apeadeiro. Como o trabalho lhe exigia a abertura ao primeiro comboio da manhã e os transportes urbanos não o serviam para aquela hora, optara por um quarto na proximidade.
A minha amizade com o Luís nunca passou além duns charros e do quarto. Também nunca se envolveu na vida da casa. Era um rapaz pobre, sem estudos, sem conversas por aí além. Quando a máquina de café avariou, deixou de abrir cedo o bar, dizia que o lucro estava na bica e que, sem ela, não valia a pena abrir a persiana.
Duas ou três vezes convidou-me a ir até ao bar fazer-lhe companhia, aprendi a tirar imperial e café, aprendi a aviar. Quando fechávamos o tasco já estávamos bem aviados e partíamos para outros tascos, sempre a partir.
Dona Graça conhecia o cheiro, ou não fosse nascida e criada em Lourenço Marques. Entrou no quarto, fungou o nariz e desatou:
- Em minha casa não! Suruma não!
A autoridade de dona da casa e mulher de muitas armas estatelou Luís e deixou-me sem jeito. Enquanto ordenava ao fumador o arrumar de malas, deixava umas deixas de desculpas, a mim, nobre estudante, por me ter arranjado um companheiro depravado.
Embora incomodado com a cena, agradou-me o facto da cama do lado voltar a estar livre.
Voltaria a encontrar Luís quando ia à baixa, com um banco e uma pequena mesa, profissionalmente a plastificar cartões de documentos. Os meus acompanhantes ficavam sempre muito intrigados quando se confrontavam com a minha amizade com um plastificador de cartões.
(Na próxima quarta há mais Quarto)

16 comentários:

Jorge Borges disse...

Novidade brilhante, o lunático, charrado, companheiro de quarto. Destinos que se cruzam, para enriquecimento das nossas almas.

Parabéns!

Abrenúncio disse...

E o produto ao menos era de qualidade?
Realmente o dito cujo não devia ter grande olho para o negócio, porque mal por mal ganharia muito mais dinheiro a vender erva do que a plastificar cartões.
Está visto que o quarto não estava talhado para grandes comerciantes.
Saudações do Marreta.

Anónimo disse...

Queres tu queiras ou não a dona Graça tem razão, o cheiro do quarto devia ser pestilento. Custáva-vos muito ir até à porta da casa? Vai lá vai e toma juízo, que já começas a ter idade para isso ou só a tens com a Tânia e a D. Graça?

Compadre Alentejano disse...

Já sabes, onde a droga entra estraga tudo.
Vai lá fazendo a vidinha com a D.Graça e as suas filhas, e deixa-te disso.
Um abraço
Compadre Alentejano

Compadre Alentejano disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Zé Povinho disse...

Já há muito que não ouvia a palavra suruma, mas veio-me o cheiro ao nariz. Lembranças de outras eras e de uma juventude nos magníficos anos 60.
O Luís não aqueceu o lugar, que a Dona Graça não era para brincadeiras com coisas dessas.
Abraço do Zé

Anónimo disse...

Que grande imaginação vai por este tasco.
Porque razão o amigo Pata Negra não se dedica a escrever novelas de alguidar.

AnA disse...

Só aprendo termos novos por aqui :-)
Aguardo o próximo quarto.

Camolas disse...

A moral lusitana contínua a imperar pelos Vossos domínios Majestade. Quando se fala em erva, que é mais natural que a alface... ai Jesus! que o "diabo anda à solta".

Anónimo disse...

"Eu por mim não me importo, aliás. é a primeira vez que vejo esta situação, de certeza que não volta a acontecer!"
(o crédito é só para mim, nem era eu que o tinha na mão, já curti suficiente, já tenhos estórias para contar, que se foda, que vá plastificar!)

Cumprimentos do director do banco!

Oliva verde disse...

Para início de ano, dá sempre jeito mais um amigo. Pena foi que a a D. Graça não se tivesse engraçado com o cheiro!
Quem será o próximo "companheiro de quarto"?
Fico a aguardar!

joshua disse...

Solidariedade e acolhimento sempre.

Abraço solidado em raridade.

PALAVROSSAVRVS REX

José Lopes disse...

Um charro não é tão nocivo como um mau governo.
Cumps

O Puma disse...

Tudo depende do iva

até o cheiro
dos animais

Fernando Samuel disse...

As coisas que um mísero charro pode provocar! (não abandones este Luís, ele tem pés para andar...)

Um abraço.

maceta disse...

Pata

então, aprendeste a aviar... cá para mim a Tânia ainda marcha...
abraço