domingo, 30 de março de 2025

10- A incrível história dum casal vencedor do euromilhões.

Retomemos então ao ponto em que íamos fechando este parentises, aos dias seguintes, ao regresso de Lisboa e da Santa Casa.

Ele deixou de ir trabalhar, passaram a ser pouco vistos e quando vistos, sempre de afetos um com o outro, pediram a um ou outro um empréstimo da ordem das dezenas, garantindo por juras e juros a sua devolução e o povo foi entregando a sua pena e compreensão ao desgraçado acometido pela doença, certamente grave pois não trabalhava, e a ela coitada que poderia ficar viúva e sozinha, em idade avançada para haver quem lhe pegasse, se tal viesse a acontecer.

Dentro deles, crescia o segredo sufocante. Era difícil falarem com os outros e, entre eles, o tema repetia-se interrompendo os seus semblantes introspetivos, até que, ainda não tinham passado três semanas, receberam a visita duma psicóloga e dum técnico da Santa Casa - uma enfermeira e um médico na versão para consumo da vizinhança. Não havia outro remédio se não confiar em alguém, a senhora doutora iria acompanhá-los nas questões emocionais e o senhor doutor iria tratar do processo de distribuição inicial dos depósitos por várias instituições bancárias sem que eles tivessem de dar a cara. Mais tarde, desfeita a montanha em montes por questões de segurança ou discrição possível, poderiam então tomar nas suas mãos o seu património financeiro ou entregar a sua gestão a alguém que lhes merecesse crédito.

 

Depreende-se que no tempo decorrido, ainda a fortuna não tinha acrescentado qualquer prazer extra ou laivo de felicidade às suas vidas, pelo contrário, o esforço para conter tamanho segredo e o medo de serem extorquidos, atazanava a sua pacatez. Tornavam-se assim longos os dias, ainda mais longos por não se trabalhar para além de fazer a comida, comer e dar comida aos animais e por se recear a vida social. Ainda por cima a simulação da doença não permitia a Jacinto chegar ao balcão do Abílio e beber uns copos para se distrair e a suposta continuação das dificuldades económicas, não dava para Francisca ir espairecer comprando isto e aquilo na mercearia da Júlia ou fazer como outras vizinhas que volta e meia gastavam uma tarde na Graça cabeleireira.

Mas pronto, esta visita do médico e da enfermeira, aqui para nós, técnicos da Santa Casa, seria para os ajudar a ultrapassar esta fase inicial em que não se sentiam minimamente preparados para lidar com a fartura financeira que deles se apoderou.

Depois de feita a aprendizagem de trabalhar com os bancos – uma ida ao banco era sempre justificada como uma consulta ou um exame médico - começaram a saldar as dívidas e a pagar tudo prontamente. Não ficou esquecida a generosa e secreta transferência para os “bem vestidos” da Santa Casa que os atenderam e desenrascaram em Lisboa.  

Para este súbito desafogo económico encontraram a justificação perfeita para enganar amigos e conhecidos: a filha dera sinais de si e estava tão bem na vida que lhes mandava algum dinheiro para os ajudar. Não era um argumento para fazer despesas na ordem do que os seus depósitos bancários mereciam, mas pelo menos permitia calar o povo que exige satisfações quando alguém próximo tira o corpo da miséria e começa a viver a vida que toda a gente merece.

- Talvez… talvez possamos fazer pequenas mudanças, devagarinho. Começamos por trocar algumas coisas da casa, mas nada de luxos exagerados.

- Sim, e podíamos comprar uma televisão melhor. A nossa já tem quase vinte anos…

A mulher sorriu.

- Sim, uma televisão ninguém estranha.

Assim começou o jogo da cautela.

Nos dias seguintes, foram fazendo pequenas aquisições: primeiro, uma televisão nova. Depois, uma mesa de madeira para a cozinha, já que a antiga estava torta há anos. Mas cada compra vinha sempre acompanhada de uma explicação bem pensada para os vizinhos.

-  A televisão? Comprámos em segunda mão, uma pechincha! - diziam quando alguém perguntava.

-  A mesa? Já andávamos a juntar dinheiro para isto há tempos - acrescentavam.

Contrariamente ao que seria de esperar o casal estava até a entender-se muito bem. Dir-se-ia que o pacto do “não dar nas vistas” estava a funcionar lindamente. Estas pequenas despesas eram normais para quem tinha descendência bem emigrada.

Toda a gente aceitava que era normal que, por causa da doença saíssem algumas vezes, que por terem pouco para fazer fossem muitas vezes passar a tarde à praia dos pobres, a nascente do Agroal, que fossem outras tantas vezes a Fátima pedir velas de saúde à Santa e fossem a feiras, mercados e festejos para passar o tempo.

- Quem diria que a galdéria da Lúcia iria endireitar a vida a ponto de auxiliar os pais desta maneira?



domingo, 23 de março de 2025

9- A história incrível dum casal contemplado com o euromilhões.

Como último favor, chamaram táxi para os ir buscar ao 194 da Avenida da Liberdade, com discretas despedidas para não levantar suspeitas. 

Jacinto limpou os pés no tapete de entrada do prédio antes de descer para o passeio da avenida, sinal de que ainda não tinha os pés bem assentes no chão.  Francisca e os “bem vestidos” sorriram compreensivamente.

Acontece que por si, o número da porta já dá uma pista para o taxista que conhece a Avenida como a palma da mão e, vai daí, ainda os assustou: - Foi muito?!...

Foi muito o sarcasmo e muito o descaramento pelo que, depois do choque inicial, o casal acabou por reagir dissimuladamente, fingindo não perceber, não dando troco, dando um par de sorrisos com ar torto, não dando confiança ao pobretanas que passava o dia acravado no inferno do trânsito da cidade grande.

Ainda por cima era burro, alguma vez, se fosse o caso de terem ganho um grande prémio, iam para Santa Apolónia apanhar um comboio para Vale dosOvos?!

 

Sentiram alívio quando finalmente se viram sentados na carruagem. Agora a sensação era completamente diferente da viagem para Lisboa. Não havia tanta ansiedade nem incerteza, mas sim um peso invisível sobre os seus ombros. Sabiam que estavam prestes a enfrentar o maior desafio das suas vidas: esconder a fortuna de uma aldeia inteira habituada a saber da vida de todos.

— Vamos manter tudo igual, ouviste? Nada de gastos exagerados, nada de mudanças bruscas. Se começamos a comprar coisas caras, toda a gente vai desconfiar.

Jacinto assentiu.

— E se alguém nos perguntar por onde andámos estes dias?

— Dizemos que estiveste internado! Não saiste de casa de ambulância? Quando chegarmos vamos logo diretos ao café para parecer tudo normal e evitar falatórios.

 

Entraram no seu café de todos os dias como se nada tivesse mudado, como se continuassem a ser os mesmos de sempre. Um grupo de fregueses jogava às cartas mas mostraram as orelhas quando o Abílio disse do lado de trás do balcão:

— Então? Ouvi dizer que estiveste no hospital! Pela tua cara já estás pronto para voltar ao trabalho!

A mulher sorriu com naturalidade.

— Oh, foi um susto mas julgamos que já passou. Coisas do coração! Trabalhar é que por enquanto… está quieto! Por agora vai ficar de baixa.

Jacinto não disse nada. Sempre fora pior a mentir do que a Francisca e agora sentia que qualquer palavra a mais podia estragar tudo.

Tomaram o caminho de casa a pé, sentindo os olhares curiosos de vizinhos, a mulher dando conversa a este e àquele acerca da convalescença e da doença do marido, e este sempre calado com o ar empedernido de quem acabou de sair dum internamento.

Agora que a incrível história deste casal que ganhou o euromilhões já vai em andamento, convém tomar conhecimento das origens destas personagens, aqui caídas somente por terem ficado ricas sem ser à custa de outros, sem corpo, sem feições e sem passado. As mãos do narrador não estão, por agora, viradas para dar formas físicas ao homem e à mulher mas exige-se que, ao fim de duas mãos de dias deste enredo, de Francisca e Jacinto se saiba alguma coisinha da sua história “antes-prémio”, já que do futuro haverá ainda muito a contar ou não estivéssemos aqui senão para outra coisa.

Saiba-se então que Francisca ficou orfã de mãe pelo seu parto e o pai, safado, safou-se da criar e desapareceu, segundo lhe vieram a contar já crescidita, fugiu para o Brasil ou para lá perto.

Foi criada numa instituição para meninas em Tomar, onde, chegada à adolescência, se tornou indomável, transgredindo regulamentos, desaparecendo à noite, estabelecendo contactos com pessoas pouco recomendáveis, uma dor de cabeça para os responsáveis pela casa.

Foi nessas aventuras que conheceu Jacinto, já ambos nas raias da maioridade.

Jacinto viera há poucos meses para a zona, trazido para trabalho duro por um empreiteiro de obras viárias, fugindo a um lar disfuncional, o pai alcóolico que desde pequeno o carregava de porrada, um irmão deficiente mental e a mãe, desistente do direito a momentos de alegria, acabrunhada, rendida ao destino, sem amor para dar, apenas presença.

Foi neste contexto que ambos se identificaram e se uniram, juntaram-se e ocuparam a casa velha da avó materna de Francisca, nas imediações de Vale dos Ovos, sua única herança, conjuntamente com dois palmos de terra e uns currais velhos ao redor. O pai, quem sabe ainda vivo em S.Paulo ou em Manaus, nada deixara, tudo indicando que, tal como Jacinto, caíra por ali como forasteiro, trazido para obras de melhoramento na linha férrea.

Ainda não tinham vinte anos quando lhes nasceu a filha que,  com os genes dum ou de outro, por sina, acaso ou má criação, desapareceu prematuramente do convívio familiar, já o contámos. Antes que nos esqueçamos, deixemos, ainda o seu primeiro nome, Lúcia, pois, só podia ser, se atendermos ao nome dos progenitores.

sexta-feira, 21 de março de 2025

Mais um dia mundial - desta vez é o da poesia.

Não sei porquê, nem me interessa, nem acho piada,
Mas hoje é Dia Mundial da Poesia.
Reparem que mudei de linha para parecer verso
e vou fechar com a rima "é dia".

Volto a repetir: é dia!
Hoje é dia de passear com ela
Porque é o seu dia.
Já que nunca encontro um pretexto para falar de poesia,
Já que há muitos anos que perdi o estado de poesia,

Podem não achar piada mas esta rima entrelaçada

Pode ser considerada  uma poesia de nada.
Para ler  por quem não tem mais nada para fazer
Escrita por mim. Sim. 

Vou dar uma volta com ela. Com a poesia! Ainda não sei se a levarei presa por uma corda, como quem leva a vaca à fonte, ou se a levarei presa por uma trela como quem leva a cadela a defecar a monte. Ou então irei sozinho ver as árvores, os cães, as vacas e as pessoas. Talvez nesses encontros eu possa refletir acerca da forma como eu, se fosse poeta, traduziria os sentimentos em poesia.

Chega! Já disse o suficiente para assinalar o dia.
Apetece-me um verso! Mas não tenho pão em casa e um verso sem pão não tem graça!
Uma sandes de versos ia! Uma poetisa ia...
Não vou a lado nenhum com esta prosa!
Vou beber um copo para embebedar a poesia! Talvez com vinho ela vença a timidez
E desabroche! Chega não se diz! Basta! Não tem graça!

Omar Vignole - escritor e poeta argentino que se costumava passear com um vaca, aqui referido por Pablo Neruda.




quarta-feira, 19 de março de 2025

Um negócio sério

- Gostava que viesses comigo!

Eu tinha vindo a casa passar as férias de Natal de 75, sou de 62, tínhamos acabado de jantar, vesti a gabardine e fui com ele a pé, lugar abaixo, à casa de fulano tal que servia de intermediário de sicrano. 

Abriu-se a porta, sentar, beber alguma coisa, alguma conversa trivial e deu-se início ao ato de negociar. 

Não era um negócio qualquer como vender dois quarteirões de pinheiros, trabalhar à troca ou comprar uns leitões, íamos adquirir o primeiro automóvel da família. Já conhecíamos aquele Hillman de vista, as mãos do dono e a sua seriedade, sabíamos que era carro com condições para ir à Nazaré, à Batalha, a Fátima e à missa de domingo, o montante é que era o delas! 

Quando se chegou aos 13 contos o meu pai olhou para mim  e eu, primeiro pensei que ele tinha achado graça à coincidência de ser a minha idade mas não, ele estava a indagar silenciosamente pela minha concordância.

Fechado o negócio, voltámos para casa a pé, mas com carro comprado, e todos sentimos que havia mais um homem na família.  

Anos mais tarde, já o Hillman IMP tinha dado lugar a outro e não tinha direito a garagem nem a grande futuro, aprendi a conduzi-lo. Desafiei o meu pai para ir dar uma volta comigo nele:

- Conduzes bem! Acho que devias começar a pensar em  tirar a carta de condução!

domingo, 16 de março de 2025

8- A história incrível do casal contemplado com o euromilhões.

 - Mas nós não temos conta no banco!

Desta vez o homem alto e bem vestido não se riu, virou-se para a colega como que perguntando com é que vamos resolver este assunto. Sim, era evidente que nos próximos dias teriam de abrir contas, preferencialmente em vários bancos. Mas como poderia a Casa adiantar algum para eles pernoitarem em Lisboa e regressarem a casa?


A mulher baixa e bem vestida riu-se, virou-se para o colega como quem diz que encontrou a única maneira.

Saíram os dois por instantes e regressaram à sala para apresentar a única solução. Eles próprios, os dois funcionários, iriam ao multibanco e levantariam algum para lhes emprestar. Era só uma questão de se determinar a quantia e de assinarem um papel confirmando o empréstimo. Francisca e Jacinto não tiveram outro remédio se não concordar, prometendo que lhe duplicariam a quantia. Não seria necessário, responderam-lhes, mas além de lhes emprestarem algum líquido, iriam com eles a um hotel 5 estrelas, ali próximo, para ali pernoitarem e ali experimentarem os luxos da sua nova vida.


Os dois funcionários prometeram e pediram sigilo absoluto nestas combinações, não fossem os regulamentos internos arranjar-lhes alguma mancha na carreira. Não tinham dúvidas que estavam a agir por bem, embora não fosse muito normal, pobres desenrascarem ricos com dinheiro.


Riram-se os quatro do bom entendimento. Os felizes contemplados foram deixados no hotel, com o disfarce possível para os empregados não estranharem ou perceberem que se tratava de felizes contemplados com o primeiro prémio do euromilhões.


Sentiram incómodo por não haver maneira de esconder a sua origem e condição, provincianos pobres entre aspas, andaram pouco à vontade por circularem por espaços e tocarem objetos que lhes eram estranhos.

Na suíte foi diferente, ninguém os via. Testaram almofadas e colchões, espreitaram por janelas, miraram espelhos - para que é isto? como é que isto funciona? olha aqui isto! -tomaram banho, tentaram fazer amor, não conseguiram - mau! mau! – disse Jacinto - é muita emoção! – disse Francisca.


Desceram para Jantar. Nem aquela comida era para eles, nem aquela mesa e aquela toalha, nem aqueles pratos e aqueles talhares, nem aqueles jovens assim vestidos e com palavras a condizer. Se a fortuna por sorte os tomou, não seria de certeza para a esbanjar a frequentar locais daqueles e muito menos a comer coisas daquelas.

  

Subiram novamente, tentaram ligar a televisão não conseguiram, tentaram ligar o ar condicionado não conseguiram, tentaram novamente fazer amor não conseguiram, tentaram falar do dia de amanhã não conseguiram, tentaram dormir, só lá para as quatro da manhã.

 

Mas tinham conseguido responder à opção de tomar o pequeno-almoço no quarto. À hora combinada estavam à porta do hotel para se encontrarem com a mulher baixa e bem vestida. Esta havia-se disponiblizado para os acompanhar a uma agência bancária para abrir uma conta e nomear um gestor de confiança. Depois disso, dirigiram-se novamente à Santa Casa para tratar de mais umas burocracias e assinaturas e clarificar como se processariam as coisas nas próximas semanas.


Decorridas 24 horas tinham despachado o assunto que os tinha atormentado nos últimos dias e tinham arranjado dois amigos, um homem alto e bem vestido e uma mulher baixa e bem vestida, que estavam dispostos a ajudá-los no que fosse preciso, que os informariam por telefone do montante do empréstimo - somados os valores líquidos às contas feitas com o hotel - que se arranjaria forma de ser feita a transferência, que seria a dobrar! - repetiu Francisca para encerrar a conversa.


Como último favor, chamaram táxi para os ir buscar ao 194 da Avenida da Liberdade, com discretas despedidas para não levantar suspeitas.

domingo, 9 de março de 2025

7- A história incrível dum casal premiado com o euromilhões.

Troçava ela deveras irritada pela forma como o marido se descaiu em plena cidade. De vez em quando olhavam para trás para confirmar que o homem não vinha no seu encalço.


Quando finalmente encontraram o edifício, demoraram um momento a ganhar coragem para entrar. A mulher empurrou o marido para a frente. O homem limpou as mãos às calças, respirou fundo e avançou.
 A funcionária que os atendeu olhou para eles com um meio sorriso condescendente. Certamente estava habituada a receber pessoas como eles — sonhadores, crédulos, gente simples que vinha confirmar se um conjunto de números lhes tinha realmente mudado a vida. Não raras vezes haveria confusão, um número mal lido, uma troca de concursos, um chico esperto… Não era contudo o caso, Francisca tinha tudo mais que confirmado. Se houvesse um “não” era porque tudo aquilo não passava duma grande vigarice.
 
Quando atabalhoadamente conseguiram dizer ao que vinham, foram encaminhados, com extrema simpatia, para uma sala com uma mesa ao centro. Foi-lhes dito para aguardarem, que já viria alguém para os atender. Os minutos que se seguiram pareceram ter centenas de segundos. Olharam as paredes, o teto, o chão, os quadros, um para outro, para as mãos, para a porta… até que finalmente entrou um senhor alto e bem vestido e uma senhora baixa e bem vestida. Cheios de nove horas começaram a cantar uma conversa que pelo conteúdo e pelo tom, já teriam cantado muitas vezes. 
Seguidamente: nomes;“o vosso bilhete?”; confirmação; os muitos parabéns; felicidades; vamos ter de fazer isto e aquilo; vamos começar por….
 
Francisca, ouvia de braços cruzados e olhos arregalados. Jacinto inclinava o tronco sobre a mesa como se isso lhe permitisse mais atenção ao que era dito, sentia o sangue a faltar-lhe na cabeça, sentia-se tonto, aéreo, era difícil aterrar naquela realidade, valia-lhe a força de Francisca que, quase encostada a ele, de vez enquando lhe apertava o braço.
 
O cenário, a situação, o tom profissional dos funcionários com vocabulário da cidade impediam
que se sentissem à vontade e, escusado será dizer, que ainda não havia tempo para se estabelecer a relação desigual que habitualmente os muito mais ricos, eles, tem com os muito mais pobres, os bem vestidos que estavam à sua frente a debitar discurso. Afinal de contas, em termos relativos, sabemos que até há poucos dias as coisas eram exatamente ao contrário: aquela mulher e aquele homem com aquele bom emprego era muito mais ricos que Jacinto, trolha, e Francisca, digamos assim, sua doméstica.

Seguidamente: “o prémio é para os dois?” (nem se pergunta!); nomes completos; cartões de cidadãos; morada; idades; telefones…
A mulher baixa e bem vestida tirava notas, entrava e saía para tirar fotocópias, entregava guias, papéis enquanto o homem alto e bem vestido relatava procedimentos, fases seguintes, cuidados, acompanhamento de técnicos, gestores,psicólogos, se necessário, e que também era necessária muita calma.
- Calma! Não tenho aqui dinheiro para vos dar!
- Mas não temos dinheiro para ir para casa, nem para comer, nem para dormir em Lisboa!
- Ah!Ah! Ah! Ah! Ah!
- Está a rir-se de quê? – disse Jacinto num espasmo de falta de paciência.
- Calma! Peço desculpa! Já me aconteceram aqui muitas mas nunca essa! A partir de hoje os senhores não terão problemas com dinheiro! Podem ter problemas com o dinheiro mas não terão problemas de dinheiro! No final destas nossa conversa vou falar com os meus colegas para tentar resolver a vossa situação para os próximos dias.
- Tem aí o seu nib?
- Isso não está no cartão de cidadão?
- Não, pretendo um número duma das vossas contas bancárias.
- Mas nós não temos conta no banco!
 

sábado, 8 de março de 2025

Calo-me

Deus deu-me tudo para ser poeta, as aves, as árvores, a humanidade e a dor, esqueceu-se das palavras, por isso, calo-me.

quarta-feira, 5 de março de 2025

Dobro-me no meu sofá.

Nunca bebo demais. Nem neste dias "gordos" bebo demais.
Mas hoje, ando a ver tudo a dobrar.

Vejo dois presidentes da república: um fala de mais quando não é preciso e outro quando é preciso não fala.
Vejo dois primeiro ministros: um diz que fez, que faz, que vai fazer, outro esconde o que fez, não sabe o que faz, nem o que há de fazer.
Vejo duas oposições: uma que não tem medo de mudar e outra que tem medo de eleições.
Vejo dois países: um que absorve a riqueza produzida e outro que produzindo nunca sai da cepa torta.
Vejo duas europas: uma é da paz e da democracia, a outra grita a guerra na voz dos não eleitos.
Vejo dois Costas: um está na "quadratura do círculo", outro não tem filhos em idade militar.
Vejo dois papas: um não quer morrer, outro quer ir para o céu. 
Vejo dois Putins: um quer transpor o rio de Onor, outro não consegue atravessar o Dniepre.
Vejo dois Trumps: um ordena a paz na Ucrânia, outro sugere a consumação do genocídio em Gaza.
Vejo dois Zelinkys: um é corajoso e desafia o Trump, o outro perde a face e ajoelha-se ao Trump.
Vejo duas televisões: numa está o Milhazes, noutra está o Nuno Rogeiro.

Calma! Estou a ver tudo multiplicado! Maiorias que se formam na parada! Vai tudo para a guerra! Os pais estão a tirar os filhos das escolas para os alistar! Os governantes exibem milhões que não existiam, agitam-se bandeiras, os telespetadores fazem coro com os seus comentadores, avancem jovens, avancem, sobre a terra e sobre o mar! Tendes a oportunidade de morrer heroicamente!

Todos os dias, de manhã, vou verificar os marcos do meu quintal, nunca me esquece o que aconteceu em Olivença. Hoje, quando regressei a casa, sentei-me frente à televisão e vi-a dobrar. Fui buscar o espelho grande que tenho na sala de jantar e coloquei-o no lugar da televisão: eu estava sozinho no meu sofá.


domingo, 2 de março de 2025

6- A história incrível do casal que acertou no euromilhões

Sim, já o dissemos, pelo sim pelo não, queixara-se nos últimos dias aos colegas de trabalho que não andava bem, o fígado, os rins, o coração, eu sei lá o que é, até que ao terceiro dia disse-lhes a eles e ao patrão:

- Amanhã tenho de ir ao médico, não sei o que é que se passa comigo.


Chegado a casa, desanuviou o ambiente com a esposa, contando-lhe a decisão e ainda mais:
- De madrugada vais ligar para o 112, vou queixar-me de dores pelo corpo todo e vais fazer questão de me acompanhar com os bombeiros até ao hospital. Aí chegados, chamarás um táxi e eu arranjarei maneira de me escapulir, rogando pragas ao atendimento das urgências. Sairei representando uma cena “para inglês ver” e entrarei no carro, “leve-nos a Lisboa que estes gajos aqui estão-se a lixar para mim, eu pago-lhe todo o dinheiro que tenho, leve-me daqui!”
- Então e aqui não vem a velha questão de não teres dinheiro para pagar ao taxista?
- Quando eu digo pago-lhe todo o dinheiro que tenho, é isso mesmo, vamos dar-lhe todo o dinheiro que temos, se não chegar ele que se amanhe, porque com os pés em Lisboa, correremos pela rua onde ele nos deixar e, aí sim, a pé ou com bicicleta roubada, haveremos de encontrar o nosso destino.
 
Já farta de ser rica, sem ver tostão, rendeu-se ao plano do marido. Passaram a noite inteira a repetir os detalhes da história que iriam contar, cada um com seu papel bem ensaiado.
Representada a cena da ambulância e do hospital, deram por si no táxi a caminho de Lisboa. Durante a viagem, ele suava e tremia, mais de nervoso que de doença. A mulher apertava o boletim na mala como se levasse um santo milagroso. Todo o trajeto foi uma longa sucessão de pensamentos silenciosos, ele perguntando-se se não estava a cometer um erro de estratégia, ela imaginando o que os esperava.

- Então mas para que hospital os senhores querem ir?
- Deixe-nos no centro que a gente desenrasca-se.
- Lisboa tem centro?
- No Rossio.
- No Rossio não conheço nenhuma clínica.
- Não conhece mas há.
- O senhor está bem?
- Se estivesse bem não tinha fugido das urgências!
- Os senhores é que sabem!
- Quanto é que o senhor nos vai levar?
- Tenho de fazer as contas. 200 euros?
- Tanto!
- Os senhores vieram de taxi, não vieram de burro!
- Mas nós não temos esse dinheiro!
- Só me faltava esta!
- Fique com o meu número de telefone que depois pago-lhe!
- Isso é que era bom, chamo a polícia!
- Ok, antes na prisão do que no hospital!
- E é já aqui no Marquês, deixem-se ficar dentro do carro que eu vou falar com aquele polícia!
- Que taxista mais burro!
E ó pernas pela avenida abaixo e o burro do taxista a perdê-los de vista, a perder o seu belo, de paciência perdida, perdido...

E perdidos também, numa Lisboa às vezes indiferente, às vezes avessa, marido e mulher, sentiam-se como peixes fora da água. O ruído, o movimento constante, a pressa nas ruas — tudo os assustava. A mulher apertava a mala contra o peito, como se o boletim pudesse evaporar-se a qualquer momento. O marido olhava para todos os lados, desconfiado de cada figura que se cruzava com eles. Perguntamos a quem? Perguntamos o quê? Como encontrar alguém que inspire confiança? Que pergunta fazer para não fazer desconfiar?

- O senhor pode-me dizer onde fica a Santa Casa da Misericórdia que eu tenho de meter o totobola?
- Mas não precisa de ir à Santa Casa para fazer isso, olhe ali aquele quiosque!
- Mas eu faço questão de o meter lá, é mais certo, não será tão fácil levar descaminho!
- O senhor é que sabe, desça pelo lado esquerdo até encontrar uma porta que diz Santa Casa. Mas olhe que eu acho que lá não dá para jogar, creio que é só para receber prémios!
- É isso mesmo!

O informador ficou com um olhar interrogativo mas seguiu o seu caminho, e o Jacinto foi a ouvir das boas da Francisca pela avenida abaixo:
- É isso mesmo! É isso mesmo!...
Troçava ela deveras irritada pela forma como o marido se descaiu em plena cidade. De vez em quando olhavam para trás para confirmar que o homem não vinha no seu encalço.

domingo, 23 de fevereiro de 2025

5- A história incrível dum casal que ganhou o euromilhões

Não é isso mulher, depois vinhas para casa a cavalo em quê? Em mim? E não me venhas outra vez com a ideia dos taxistas manhosos ou das confusões dos comboios!

- Temos o fim de semana para pensar, que temos de ir e podes avisar o patrão que, a partir de segunda-feira, não vais! Ou melhor, para não dar nas vistas vais! Mas tens de começar a arranjar uma desculpa para não ires trabalhar daqui a uns dias, começas a queixar-te de dor de barriga, de dor de costas, de dor de corno, do que quiseres. Tens de ser convincente, vais adoecer e ter de faltar uns dias, depois, quando tivermos o nosso dinheirinho, a doença tem de te levar à invalidez! Ou queres continuar a vergar a mola mesmo rico?... Eu vou para a cama e espero que amanhã acordes com uma solução para o problema!

- Eu bem dizia que isto só nos ia trazer problemas!

Claro que ia começar uma longa noite em branco para ambos, entrelaçada de diálogos curtos: tira daí a mão; onde é que escondeste o boletim; será que estou a sonhar; já estás dormir; isto só nos vai trazer problemas; acabaram-se os problemas de dinheiro; não podemos dar nas vistas; vou ter de acabar por contar alguém; não podemos contar a ninguém; tira daí a mão…

Durante o fim de semana seguiram a sua rotina habitual, apenas quebrada por pensativos silêncios, mais e mais curtos diálogos entre ambos. Foram várias vezes ao café do Abílio, mas foram incapazes de meter conversa, dar troco a conversa ou permanecer. Francisca deu vezes sem conta comida ao cão, às galinhas e confirmou o boletim de hora a hora. Jacinto fumou, bebeu, repetiu idas à retrete e na segunda-feira foi trabalhar. 

Durante o dia começou a queixar-se que não andava bem, que não se sentia bem, que não estava bem, que qualquer coisa não estava bem, deixando no ar a ideia que alguma maleita se estava a apoderar do seu corpo rijo e são.

Ao serão, marido e mulher, continuaram a ter dificuldade em falar um com o outro e a noite voltou a ser difícil. Quando se cruzaram, cada um se virou para seu lado, para dentro de si, cúmplices dum segredo amordaçado, enjaulados num sonho sem saída, ela interrogando-se se alguma vez fez sentido serem um casal, se não era este o impulso que daria sentido à sua liberdade, ele quase que a acusando de ser responsável pela interrupção do seu quotidiano normal, sem conseguir acreditar que a fortuna estava à distância duma deslocação à capital.

Até que, ao terceiro dia, concordantes que tinham de se decidir, que o segredo era a alma da situação e obrigatoriamente os unia na cumplicidade, que contactar a Santa Casa era inevitável, que inevitável era também ter de apresentar o bilhete da sorte e dizer a algum humano “isto tem aqui alguma coisa”, fez-se luz ao trolha de serviço.

Sim, já o dissemos, pelo sim pelo não, queixara-se nos últimos dias aos colegas de trabalho que não andava bem, o fígado, os rins, o coração, eu sei lá o que é, até que ao terceiro dia disse-lhes a eles e ao patrão:

- Amanhã tenho de ir ao médico, não sei o que é que se passa comigo.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

4- A incrível história dum casal que ganhou o euromilhões

Jacinto, sozinho em casa, mirava as chamas, incrédulo, entre gargalhadas solitárias, cigarros acesos uns nos outros, cismas e monólogos, foi à garrafa três vezes, sentiu o coração como nunca havia sentido desde o nascimento da filha, sentiu suores, medo, alegria e só não chorou porque desde mancebo assumira que isso não era coisa de homens. 


Ouve-se o ruído da motorizada a chegar. Francisca entra com andar despachado.

- Julgo que não desconfiaram de nada, o Abílio insinuou que eu andava a fumar sem tu saberes. Além disso, como ele sabia que eu tinha jogado, com certeza que não viu mal nenhum em eu apontar os números. Toma lá, vê lá se está aí o número de telefone para casos de prémios. Liga tu que tu é que és o homem e eu nem saldo tenho no telemóvel! Eu vou confirmar novamente a chave.

- Onde é que tens o talão?

- Já te disse que está escondido e, depois do que fizeste há bocadinho, ainda não tenho confiança para to dar à mão!

- Ai não tens confiança na minha mão! Vê lá se a minha mão dá com ele num sítio que eu cá sei!

- Deixa de ser ordinário!

Regressada do quarto, confirma efuziante a sorte e depara com Jacinto de telemóvel na mão, paralisado e sem ter feito a ligação.

- Não! Não vou ligar para um desconhecido! Confirma-se? Mostra lá!

- Já te disse que não te dou à mão o talão! É perigoso! Tu às vezes passas-te! Ou tens confiança em mim e resolvemos isto juntos ou não tens e então o caso é outro e é só meu!

- Tu é que te estás a passar! Se há de ser só dum, é meu, tu jogaste com o meu dinheiro e sem minha autorização, é meu!...

- Bom, só me faltava esta! Não é agora que nos vamos zangar! Se não telefonas tu, telefono eu!

- Isso é que era bom! O telefone é meu! Em vez de estares a insistir, talvez fosse melhor começarmos a pensar numa maneira de levantarmos o prémio em segurança e sem dar nas vistas. Mas para isso tens de ter confiança em mim e mostrar-me o bilhete que, segundo dizes, vale milhões.

- Já te disse que acertámos nos números todos, tu tens de acreditar em mim e começar a pensar numa solução. Já que tens medo de telefonar, que é que sugeres?

- Vamos lá pessoalmente a Lisboa, julgo que é na Santa Casa da Misericórdia, não sei onde fica mas havemos de dar com o sítio!

- Nem sabes onde é Lisboa quanto mais onde é a Santa Casa! Mas pronto, isso tem solução, alugamos um táxi e ele levar-nos-á à porta!

- Tu deves julgar que um táxi daqui para Lisboa é barato! Imagina que chegamos lá e os tipos dizem que esse papelucho que tens nas cuecas não vale nada ou, se tiver, que não nos entregam logo o dinheiro? Como é que pagas ao taxista se não tens dinheiro para mandar cantar um cego?

- Ora essa, falamos ao Pisca Pisca, ele conhece-nos, há-de perceber que vamos poder pagar-lhe, se for preciso, a dobrar.

- Irra que ainda não percebeste! Ninguém pode saber que vamos ficar ricos! Então e logo o Pisca Pisca que tem uma língua de taxista!

- Então vamos até Leiria de autocarro e falamos com um taxista desconhecido...

- Pelos visto vou ter de repetir: não temos dinheiro para pagar o táxi e ninguém nos vai emprestar uma quantia dessas! Além disso, mesmo que ele não nos levasse à porta da Santa Casa e a gente inventasse outro sítio de destino, o homem vai sempre desconfiar, um casal com o nosso aspeto, armado em rico a viajar para Lisboa de táxi vai fazê-lo sempre concluir – só lhes pode ter saído a sorte grande.

- Então vamos de comboio, temos aqui a estação ao pé, havemos de nos desenrascar nas agulhas e chegar a Lisboa, não?

- E vais no meio de tanto passageiro com esse papelinho que anda a fazer de penso higiénico e que vale milhões?

- Porrinha! Mas tenho que te mostrar a passarinha para parares com essa boca?

- Não, Deus me livre de te ver a… a…. Estou tão nervoso que até me esqueço do nome das coisas! Mostra-me mas é o papelinho para eu acreditar que tudo isto não passa duma brincadeira para me pores a pata em cima...

- Tens de acreditar em mim!

- E tu tens de confiar em mim!

- Queres ver que agora não vamos levantar o prémio por problemas de transporte! Daqui a bocado ainda vais acabar a sugerir que vamos na Sachs!...

- Estás quase a ficar tão esperta quanto eu, parece-me boa ideia...

- Ó homem, alguma vez a motoreta chegava a Lisboa? E a gasolina? Ias levar um bidão no suporte? Além disso, tu sabes lá o caminho ou sabes lá entender-te naquela confusão de trânsito!

- Isso não seria o problema. Estou a lembrar-me que Lisboa está cheia de larápios e iam roubá-la enquanto estivéssemos a tratar do nosso assunto...

- E tu depois não tinhas dinheiro para comprar outra...

- Não é isso mulher, depois vinhas para casa a cavalo em quê? Em mim? E não me venhas outra vez com a ideia dos taxistas manhosos ou das confusões dos comboios!

domingo, 9 de fevereiro de 2025

3- A incrível história dum casal a quem calhou o euromilhões


- Então vamos falar a sério, tens a certeza que os números são esses?

- Tu é que os escreveste!

- Então olha, eu não tenho a certeza de que os números são os que te disse!... E agora?

- Nesse caso vais ao café, devem estar lá afixados, pedes uma caneta e um papel e vens a correr para casa para confirmarmos se estamos ou não ricos!



- Tu és maluca! Eles sabem que eu nunca jogo, iam logo desconfiar! Isso não!

- Então, pedes um café e sorrateiramente tiras um papel daqueles que lá estão para preencher, eles devem ter escrito um número de telefone para onde ligar num caso destes...

- Olha! Olha! Eu nunca vou lá tomar café à noite!... Iam logo desconfiar! E depois, se for verdade, vamos telefonar para um desconhecido? Sabemos lá se não é um tipo qualquer que localiza a chamada e vem cá ter noite dentro. Parece que já o estou a ouvir: o bilhete ou a vida! – muito provavelmente as duas coisas!...

- Acabou a conversa, vou lá eu! Chego lá e digo... digo... peço um maço de tabaco para ti, digo que estás cada vez pior, que te tenho de fazer todos os favores e vontades e tiro um papel dos tais, eles sabem que tu costumas tirar o papel mas nunca o registas!... Se eu não regressar dentro dum quarto de hora, é porque me descaí com alguma e eles me agarraram!... 


Francisca era uma mulher desenrascada, andava na motorizada melhor que muitos homens e e não era o facto de andar de saias que a impedia disso. Em tempos, ia levar o Jacinto à porta do patrão, punha a alcofa da bébé sobre o depósito de gasolina e ia com ela ao médico, à bruxa ou onde fosse  preciso.

Tanto que fez por aquela filha para que ela, assim que se viu com corpo de mulher, se enfiasse num beltrano e fugisse, não sei de quê, com ele para o Luxemburgo. Já lá vão meia dúzia de anos, por lá se mantém, bem, segundo assegura no curto telefonema que faz pelo Natal. Falamos desta relação distante para adiantar, que não se espere por hora, que alguém entre na partilha da fortuna, nem mesmo a filha que, como se vê, não é merecedora.


Mas voltemos ao caminho do café, o farol da Sachs a romper a noite escura e o som da aceleração a denunciar que Francisca não conduzia com o espírito dos outros  dias. O Abílio do café reparou logo:


- Conheço bem o barulho da vossa motorizada, vi logo que não era o Jacinto mas também não me pareceste tu! Até pensei que tivesse sido roubada! Que se passa rapariga? Acabou-se o sal quando estavas a fazer a sopa?


Antes de se precipitar na conversa, Francisca topou os  clientes na sala, ao balcão estava o Pisca Pisca taxista com a sua habitual grande bebedeira de sexta-feira, alheio do tudo o que o rodeava, dois rapazolas olhavam para uma jogadas de futebol na televisão e uma mesa de quatro disputava um dominó de antes do jantar. 


- Ó Abílio! O meu homem está cada vez pior! Disse que estava cansado mas cá para mim ele entornou-se aqui. Tanto me chateou a cabeça que não tive outro remédio senão vir buscar-lhe um SG.

- O rapariga se ele ia entornado não foi aqui, no máximo bebeu uns quatro ou cinco copos e comprou um maço.

- Ai aquele desgraçado que não me disse que tinha perdido o tabaco!

- Já jogas ao euromilhões às escondidas dele, não me digas que também andas a fumar às escondidas?

- Não digas isso nem a brincar Abílio! Ainda bem que falaste no euromilhões! Empresta-me uma caneta e um papel para apontar os números que tens aí afixados. São de hoje?

- Sim, são fresquinhos! Que tenhas ao menos um prémio que te dê para jogar para a semana! Está descansada que eu guardo segredo do Jacinto.

- Olha, boa ideia! Deixa-me levar um boletim para preencher!

- Não o amarrotes! Guarda-o no decote!

- Paga-te do tabaco e cala-te!


Jacinto, sozinho em casa, mirava as chamas, incrédulo, entre gargalhadas solitárias, cigarros acesos uns nos outros, cismas e monólogos, foi à garrafa três vezes, sentiu o coração como nunca havia sentido desde o nascimento da filha, sentiu suores, medo, alegria e só não chorou porque desde mancebo assumira que isso não era coisa de homens. 

- E se calhou? Meu Deus, nem é bom pensar nisso! Estamos tramados! Eu este sábado até  tenho de ir trabalhar sem falta, temos de encher os pilares daquela obra e não vou deixar o patrão enrascado, nem sequer posso dizer que estou doente porque isso nunca aconteceu e ele pode desconfiar... Hum! Hum!? Ela escondeu o talão! Deve estar bem escondido! Não vale a pena pôr-me a procurá-lo!... O mais certo é que o tenha levado escondido abaixo da cintura! Quando ela chegar vou averiguar!... Espera aí, e se essa cabra me foge? Ela levou a mota! Ai! Ai! Ai! Desta maneira é que nunca contei que ela me enganasse!...


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

O homem que me persegue já vai longe.

A personagem Pata Negra, Rei dos Leittões, acaba de lançar um livro com o pseudónimo João Rato. O autor, que está por detrás da personagem, do monarca da pocilga e do pseudónimo, disse a propósito do homem que o persegue:

- Ninguém acredita em mim, acabou o tempo da verdade.
Não perceberam? Querem que faça um desenho? Fiquem com um filme e comprem a porcaria do livro!