sábado, 4 de maio de 2024
Abdul Nawaf tem 12 anos e deixou de falar.
quarta-feira, 1 de maio de 2024
A morte saiu à rua
Singular, foi um homem singular.
(Vou ter de me equilibrar evitando as três pessoas do singular, os egos de "eu", lamechas de "tu" ou referindo-me a "ele").
Ele foi conhecido como militante do Partido Comunista Português. Tu foste um natural de Lisboa apaixonado por Ourém. Eu experimentei o sabor da tua amizade e vivi o interior desse triângulo em que tantos te reconhecerão: Amigo, Ourém, Partido.
Sei que o coletivo fez e fará proveito da sua militância, do seu conhecimento e do seu legado político. Mais tarde ou mais cedo, a sua terra terá de engolir o preconceito e realizar atos de reconhecimento que não lhe fez em vida. Resta-me, portanto, dar testemunho daquilo que tantos receberam dele, a capacidade extraordinária de criar e alimentar a amizade.
Ele tinha idade para ser meu pai, mas nunca mostrou qualquer gesto de paternalismo. Pelo contrário, às vezes as coisas descambavam para a brincadeira e eu tinha a sensação de estar a conviver com um amigo da escola.
- Vamos lanchar?
- Então telefono para casa a dizer que não vou jantar!
Dar a volta a todos os temas e assuntos, pôr a conversa em dia até chegar ao pleno da amizade plena: o tempo do silêncio com cada um a olhar para o seu lado, a mastigar as ideias ou as iscas. E à quinta:
- Este tipo que te veio cumprimentar é teu amigo?
- Conhecemo-nos, mas nunca bebi quatro imperiais com ele!
- Adotei também esse mínimo como critério de amizade. Aprendi tanto contigo pá! Até a ser amigo!...
E depois, chega-se agora ao fim e tem-se a agradável sensação de não se estar só, de serem tantos os que passaram para além das quatro. Tantos os que conviveram com um "homem-centro-cultural", que tiveram que responder à proposta "temos de fazer coisas, pá", que sentiram nos ombros a palmada de incentivo " está porreiro aquilo que fizeste, pá" , que ouviram a referência a terceiros na forma "é um tipo extraordinário", que presenciaram o respeito pelo limite das idiossincrasias (um termo que usava).
E, no entanto, ele cuidava de cada amizade com particular dedicação. Há três semanas, abraçou-me as mãos dizendo-me "gosto muito de vocês", trazendo para o afago a célula familiar.
- Falaste-me do provável caminho da demência e que já não te despertava interesse, nem a novela nacional, nem a situação internacional. Percebi que estava a viver uma despedida. Aquilo com que frequentemente enquadravas os milímetros da nossa existência nos quilómetros da História, era representado na tua fragilidade. A tua humanidade vai ter de dar-te mais uns milímetros, vamos recordar-te ainda por uns tempos Zeferino:
- Disseram em toda a parte o Sérgio morreu.
sexta-feira, 26 de abril de 2024
Vá, façam vocês em novembro!
Gosto de estar à beira mar sentado a observar, uma a uma, as pessoas a passar, de lhes medir os corpos, de lhes julgar o andar, de lhes estudar expressões e de especular acerca de quem são e de onde são.
Nada que não se possa fazer numa paragem de descanso de desfile de manifestação aos Restauradores. E estava eu ali sozinho nesse entretém quando uma senhora de 80 anos upa lá, de mala de senhora pela curva do braço, de vestuário bem encaixado na idade, muito mais baixa que eu, que não sou alto por aí além, encostou a sua isolação à minha e estendeu-me unicamente estas palavras, assim sem mais nem menos, sem boa tarde, sem adeus, ou quem és tu:
- Eu nunca vi tanta gente em toda a minha vida! Ui Jesus, o povo que para aí vai! Venho lá de cima do Marquês e vem gente de todas as ruas, a Avenida é uma enchente, aqui é o que se vê! Credo Santo nome de Deus! Em toda a minha vida nunca vi tanta gente!
E dito
isto seguiu, de passos pequenos mas frequentes, para o Rossio. Não faço
ideia de onde vinha, para onde ia ou porque estava ali. Nem sequer interessa se
era manifestante, transeunte, se ia para sua casa que era logo ali, se dava a
sua volta habitual ou se ia apanhar a camioneta para o Samouco. O que fiquei
foi muito contente de ter visto aquela senhora entre tanta gente e de entre
tanta gente ela me ter visto a mim e de ambos termos visto tanta gente como uma
senhora nunca viu em 80 anos.
sexta-feira, 19 de abril de 2024
Tratem-me da saúde
A minha carteira tem cartão de condução, cartão do contribuinte, cartão de eleitor, cartão do cidadão, cartão de residente, cartão do banco, cartão de desconto, cartão de cliente, cartão de ponto, cartão de juventude, cartão do sindicato, cartão da associação, cartão do clube, cartão de utente, cartão de saúde!...
Enfim,
sou tanta coisa e a minha identidade esta a rejeitar todos os cartões.
Sei bem onde tenho a carteira, desta vez não a perdi, ela é que me perdeu. Procuro-me e não me encontro! Já corri a estante, o quintal, os montes e vales das redondezas, a casa da Mariquinhas e, nada, não há sinais de mim! Se por acaso alguém encontrar um indivíduo com cara de mau e despenteado, desnorteado e sem centro, com ar desempregado, com carteira, sem cartões, sem saúde mental e sem dinheiro, devo ser eu. Nesse caso, é favor contactar-me através do número de telefone: 249001974.
Sem saber
do meu paradeiro, dirigi-me ao Centro de Saúde. Achei muito estranho,
estava tudo mudado, o balcão de atendimento, outros funcionários, etiquetas com
preços por todo o lado... e atendeu-me uma senhora com um estranho soutien.
- Olhe
minha senhora, eu concordo inteiramente com o princípio do utilizador-pagador,
se você fumou e contraiu cancro, se comeu muito toucinho e teve um à você,
se andava na azeitona e caiu de uma oliveira, porque diabo hão de os saudáveis
pagar os seus descuidos!? Um país não pode hipotecar a sua economia
na prestação de serviços de saúde a quem não se cuida ou no prolongamento
da vida de quem já nada pode dar à sociedade! Mas o meu caso é
diferente, eu não estou doente por culpa própria! Foram os governos e as suas
sociedades anónimas que me trataram da saúde e da identidade! Agora exijo
que me informem do meu paradeiro, que me localizem, que identifiquem a minha
situação, que me deixem viver sem cartões e que me atribuam um subsídio
para a substituição das fitas coloridas do guiador da minha bicicleta!
- O sinhô
é uma meda! Não pechebe nada! Isto já não é um centlo de saúde! É
uma loja de chineses!
- Ah é!?
Se eu sou uma meda porque é que me comem todos os dias!? Querem cartões?!Querem
identidades?! Para mim não existem chineses, nem pretos, nem brancos, nem teslas,
nem bicicletas! Existem apenas porcos e suinicultores!
E, dito
isto, num impulso de rara lucidez, peguei num monte de cartões de
embalagens que estavam atados à entrada do edifício e fugi com eles em
cima do guiador da minha bicicleta.
Já estou
melhor, vendi os cartões, fiz algum dinheiro e pu-lo na carteira. Recuperei a
identidade e a sanidade. Peço desculpa pela banalidade do texto, termina aqui.
Tenho mais que fazer, vou às bombas beber um café, comprar tabaco e abastecer a
bicicleta.
quinta-feira, 11 de abril de 2024
Antipático o raio que os parta!
O fotógrafo rabeava à minha volta no pequeno estúdio, dando jeitos em tripés, projetores e na minha pessoa: gola, cabelo, cabeça, ombros e o raio que o parta, nunca mais estava tudo bem. E, na hora do passarinho, nem ele, nem a minha mãe, me conseguiram arrancar a expressão da lei: uma pessoa para ficar bem na fotografia tem de arreganhar.
Foi assim e assim continuou a ser em todas, conforme testemunha um quadro que tenho na sala com cartões de identidade da juventude: de estudante, da JCP, de militar, de sócio da ARCA, passageiro da CP, condutor de velocípedes e músico de cabaré.
Sou, portanto, um fulano sisudo, carrancudo, incapaz de responder com uma gargalhada a uma boa anedota, que só mostra os dentes se tirar a prótese.
A minha primeira foto tipo passe foi para tratar da documentação
da matrícula no ensino preparatório. A minha mãe lá foi toda contente, comigo
de má cara ao lado dela, e só voltou a dar um passo pelos meus estudos quando
foi com o meu pai a Coimbra carregar o carro com as minhas gabardinas e
sebentas. Foi então que me fez a pergunta: “Filho, que curso é que tiraste que
as pessoas perguntam-me e eu não sei dizer?”.
E o meu pai virou-se para ela, apontou para mim e observou
contente:
- Mulher, afinal ele ri!
Já com o canudo, tentei candidatar-me a tudo e quando candidato à Junta da minha freguesia, ao fim de horas de sujeição à tortura fotográfica, nem um dente brilhou na objetiva, pelo que os responsáveis da lista desistiram de mim com o objetivo de não afastar os eleitores.
Na verdade eu rio-me muito por dentro, a maior parte das vezes de
mim próprio e nunca me conformei pelo facto de tanta vezes me dizerem, com
descarada simpatia, que sou um mal-encarado. Também já me aconteceu rir com
amizades novas que me revelam: enganaste-me bem, afinal és um monstro de
simpatia.
A verdade é que o atributo de ter cara de poucos amigos,
prejudicou de tal modo a minha carreira e a minha vida, a ponto de me ir
reformar na mesma classificação em que comecei, cepa torta e de, com esta
bonita idade, ainda não ter passado do primeiro casamento.
Na verdade… a verdade… mirando a foto e o espelho… eu era e sou
bonito!
sexta-feira, 5 de abril de 2024
2ª feira da páscoa
Lembro-me de, pixote, me interrogar do porquê de na minha aldeia, a Páscoa ser festejada na segunda-feira e concluir, infantilmente, que tal se devia às dificuldades de comunicação do princípio da Era que só permitiram que a notícia da Ressurreição chegasse no dia seguinte a lugar tão remoto.
Lembro-me de, pequenote, acordar todos os anos, nesse dia,
com o ribombar da alvorada e levantar-me excitadíssimo com o entusiasmo de quem
vai viver a data principal do almanaque do lugar.
Lembro-me de, já crescidote, tomar consciência de que a festa
era diferente porque não metia padres e de ouvir a história da família
excomungada porque permitiu que bailassem na sua eira.
Lembro-me de, rapazote, se ter de render favores ao mais rico
para que ele cedesse a garagem para o baile.
Lembro-me de ir crescendo e vivendo com conterrâneos e
contemporâneos num quotidiano em que era omnipresente o horizonte que iríamos atingir
na próxima segunda-feira da Páscoa.
Lembro-me da festa começar a dar dinheiro e, como não é terra
de santos nem os santos da terra vão com contas de vigários, se decidir que na
terça-feira se esbanjaria em borlas de sardinha, broa, vinho, foguetes e concertinas,
o líquido dos lucros da segunda.
Lembro-me de ganhar rédea a pisar povoações vizinhas e, ao
dizer de onde era, se fazer conversa sobre uma festa única que qualquer amigo
da folia conhecia.
Que seja memória de todos que as Merendeiras ganharam fôlego de Festas com o 25 de abril. Com o 25 de abril nasceram coisas novas: esperança, força, união, povo, festa. Que tempos lindos esses, em que ainda mal se ouvia falar de futebol feminino e as festas da Cartaria começaram a ser animadas pelo jogo de futebol solteiras-casadas.
segunda-feira, 1 de abril de 2024
Deus está em todo lado, eu estou em alguns.
Estou em minha casa.
Ontem fui a casa do meu vizinho mudar-lhe o vinho porque ele está mal.
Estou na minha terra.
Hoje irei ver uma jovem artista local que promete.
Estou no meu país.
Amanhã vou a uma manifestação contra o G7 e a guerra.
Mas além disso,
Estou na Palestina, no Curdistão e na Crimeia;
Estou na Eritreia, no Afeganistão e na Argentina;
Embora esteja aqui, tenho o coração na Indochina;
Estou na Síria, na Líbia, no Irão e no Haiti;
Estou em toda a América Latina.
Esbracejo e bombeio por um mundo novo.
Acordei já as notícias iam a meio.
Um bombista subiu ao pódio de S. Bento.
O povo lava os pés da vara que soltou no Parlamento.
Estou no meu país.
Esperneio sobre mãos que acariciam as virilhas de Belém.
Estou na minha terra.
Aqui ninguém lava as partes pudendas.
Estou sentado em minha casa.
Tu, que elegeste a merda, aqui não entras sem o cu lavado!
- Estou!?
Desligaram! Devia ser alguém de vendas!...
Não atendo mais o telefone, não dou mais para o cortejo de oferendas, nem saio mais de casa a não ser para bom-be-ar..
sexta-feira, 29 de março de 2024
Cruzes canhoto que o mundo está tão triste que o melhor é rir.
- Os senhores podem fazer um desenho com o Nosso
Senhor Jesus Cristo crucificado, ilustrado com a frase: "Pregos Evaristo,
os melhores há mais de dois mil anos!".
- Meu caro Evaristo, não acha que isso pode ser
um pouco ofensivo para os cristãos? Não arranja outra ideia?
- Deixem-me pensar. Então e se for o Cristo caído junto à cruz com a frase: " Se tivessem usado pregos Evaristo, não tinha acontecido nada disto"?
- Evaristo, as mensagens publicitárias devem demonstrar entusiasmo e não tragédia ou derrotismo...
- Então... que tal um Cristo a correr para a cruz com a frase: " Com pregos Evaristo não há Cristo que resista!".
Não brinques com isso! Digo então:
Tanta celebração, tanta compaixão, tanto sofrimento por um
homem que foi crucificado há dois mil anos. E no mesmo tempo, tanto
fechar de olhos, tanta cumplicidade, tanta normalidade em ver os homens e
mulheres que, nos dias de hoje, são vítimas das mais variadas formas de
crucificação.
Isto já para não falar dos crucificados, embora com
anestesia, com as inevitabilidades do capitalismo cristão e com a indiscutível
legitimidade das democracias panfletárias.
E assim se pousa sobre o peito a mão crente e se levanta a outra em saudação fascista, ao mesmo tempo que se finge ignorar que Jesus Cristo era palestino e não sionista.
quinta-feira, 28 de março de 2024
A última ceia
A última ceia só com pão e vinho?! Alguém aceita ou acredita que o petisco tenha sido sopas de cavalo cansado?! Não! Segundo o estudo de uma universidade norte-americana, basta dizer que é norte-americana para ser fidedigna, chegou-se à conclusão que comeram leitão. A investigação baseou-se na observação deste quadro descoberto num templo inca do princípio da era cristã.
sexta-feira, 22 de março de 2024
O adultério tem os anos contados.
Trabalhei que nem um louco todo o dia. Entrei exausto no apartamento. Ouço sons ofegantes, suspiros, grunhidos que vêm do quarto. Pensei:
- Entro
de rompante e armo um chinfrim?
Não, isso
seria um ato pouco civilizado. Bato à porta?
-Era o
que faltava! O quarto é meu também!
Espreito
pelo buraco da fechadura? E se a cena me desagradar? E se a cena me agradar?
Um cigarro, isso mesmo, um cigarro! O cigarro é uma vantagem que, em certas ocasiões, os fumadores têm.
Dirigi-me à janela da marquise e inspirei um cigarro bem pensado.
Ouço a
porta de entrada da casa a bater. Alguns instantes depois ela disfarça a
surpresa da minha presença e carrega a máquina com roupa da cama.
- Então
querido, não ouviste a porta a bater quando entrei?
- Ouvi,
ouvi mas não liguei! Até pensei que pudesse ser um assaltante!
- Lá
estás tu com o teu humor de homem! Fazes um bifinho para o jantar?
- De boi
ou de vaca?
- Credo!
Lembras-me o teu pai a falar! Sempre com esse humor machista!
Arranjei
um bife de porco, jantámos e fui para o computador!
Religiões vizinhas condenar-me-ão por ser infiel e comer porco, religiões próximas dirão que sou manso por não marrar, religiões ateístas contemporâneas chamar-me-ão porco por escrever este texto macho.
Conforto-me: Deus deve gostar muito dos ateus porque não lhe estão sempre a pedir coisas como os crentes.
Publiquei
um anúncio num site de classificados: "Procuro parceiro(a) para cometer
adultério".
Por
segurança não deixei nenhum contacto. Não sei se foi por isso que ainda não recebi
nenhuma resposta ou se é pelo facto do meu desejo não se encaixar em nenhuma
cultura.
Tenho um trabalho que enlouquece. Só espero que um dia não me condenem por ter enlouquecido.
quinta-feira, 21 de março de 2024
DEMO lição do conceito de poesia
Estou realmente farto da realidade. Há dias para tudo: dia
da árvore, dia da sesta, dia do orgasmo, das zonas húmidas e da poesia. Da
poesia é hoje. Hoje é, portanto, um dia de abstração da realidade e, nessa
linha, apetece-me demolir o conceito de poesia.
Comecei os meus estudos de poesia na análise académica das
poesias de amor, escárnio e maldizer dos meus pares medievais e pergunto:
aquelas bacoradas do Dinis são poesia?!
Andei de desafio em desgarrada nos montes e tabernas dos
poetas populares e pergunto: fazer rimas, é poesia?!
Vivi a poesia do amor de mãe, do canto das aves, das
árvores e dos vales, das pessoas bonitas e pergunto:
A natureza é poesia?!
Estudei os ditos "grandes poetas"
portugueses e estrangeiros e fiz deles companhia de cabeceira, cantei,
chorei, amei, enlouqueci com eles. Dos entender nos seus múltiplos
entendimentos, desmultipliquei-me e desentendi-me, desentenderam-me, dei comigo
perdido no meio de todas as palavras e de nenhumas sensações, rejeitado pelo
senso comum de maus leitores.
Por isso não me peçam definições de poesia, não me ditem
regras, não me digam o que é e o que não é. A poesia é tudo e não é nada!
Quereis poetas dos livros, comprai-os! Quereis poetas do povo, ide às tabernas!
Quereis sentir o canto da natureza, saí da cidade! Quereis sentir as ruas
versejando, saí do campo! Quereis-me com vestes de poeta, poeta em cuecas ou
todo nu? Aqui me tendes!
Na tropa eu tive a alcunha d" O poeta". Parece que ainda ouço as palmas do pelotão quando acabei de recitar este poema no jantar da passagem a pronto:
fica no céu. Aquilo é que são homens!
Mas eu não os vi, porque, o céu também é
azul.
que tenho pelo meu namorado
mas, o respeito que tenho pelo meu
namorado,
recusa-se a ir a pé!
Foi por isso que roubei uma bicicleta a um
empregado da câmara municipal,
fui presa, ainda não percebi porquê!
são como o meu namorado...
Cuidado com os homens que são dados como poetas pelos soldados!
Este é o melhor poema que fiz em toda a minha vida! E,
se este não for o melhor poema que leram em toda a vossa vida, vós estais
do lado errado da poesia! Se para vós, isto nem sequer é poesia, então
meus caros, vós sois lúcidos demais para a alma do poeta! Nem no epitáfio
merecereis um verso meu!
quinta-feira, 14 de março de 2024
Antes que seja dia do pai
Já há algum tempo que eu desconfiava: se eu não bebo,
porque é que os meus filhos me oferecem sempre vinho?! E é sempre vinho da
mesma marca!
Há dias, no meu último aniversário, não sei agora precisar
a data, comecei a desconfiar que me embrulham sempre a mesma garrafa.
Pelas minhas contas a botelha já deve ter dado mais vinho
que a água das Bodas de Caná.
Eu digo à mãe: arrecada para aí isso na despensa! Ela
guarda e eu, como só bebo água e derivados, esqueço-me da prenda.
Mas desta vez, para confirmar as minhas dúvidas, com uma
unha fiz uma marca discreta no rótulo e na quarta-feira, dia do pai, vou tirar
as provas. Vou tirar as provas e vou prová-lo!
Poderia ter uma conversa com eles mas já sei que me
responderiam que não voltariam a ir àquela garrafeira porque o homem tem as
unhas grandes e sujas. Prefiro bebê-la e obrigá-los a comprar outra para o dia
da mãe, altura em que para eu não ficar a olhar, repetem o ciclo da garrafa e
oferecem uma Nossa Senhora de Fátima luminosa à que os deu à luz. Nos serões em
que falha a luz, a circulação na minha casa está facilitada com linhas de objetos refletores como se fosse uma autoestrada. Portanto, só são sacanas com
o velho.
E perguntam os que, com tanta leitura para não lerem nada,
já bebiam um copo:
- E qual é a marca?
Então se eu não consigo precisar a data dos meus anos, como
é que eu me hei de lembrar da marca! A garrafa é de sete e meio, “chega”?!
(É melhor parar porque já disse uma asneira! Aqui em casa
desde que determinámos a proibição dessa palavra até temos engordado! Não bastam as vezes que
eles a têm dito na televisão? Fdp!)
segunda-feira, 11 de março de 2024
Conversa com a IA
Hoje telefonei para a Via Verde com intenção de resolver um problema relacionado com o identificador e fui atendido por uma voz feminina aparentemente operada por inteligência artificial. Não, não era uma daquelas marque 1 para isto e 2 para aquilo. Disse bom dia, perguntou-me o que queria, ao que eu respondi normalmente, perguntou-me se eu já tinha tentado determinada solução, perguntou-me o número de contribuinte, respondeu-me soletrando a matrícula do automóvel e a marca, trocámos mais umas impressões e eu comecei a ficar nervoso pelo que acabei por lhe dizer que já estava esclarecido. No final pediu-me para avaliar o atendimento e eu desliguei - era o que faltava, isso é que não, a conversa já estava a ir longe demais.
Depois de alguns segundos de revolta, sorri conformado: não tem direito a voto, pelo menos esta tenho a certeza que não votou no chega!
sexta-feira, 1 de março de 2024
O analfabeto político
Bertolt
Brecht (1898–1956)
quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024
Festa de anos entre os meus
Ainda ontem fiz cinquenta, hoje faço noventa - nem todos o poderão vir a dizer.
É fácil recordar aniversários idos. Um exercício mais arriscado será irmos ao futuro e relatar acontecimentos não vividos. E o melhor é fazê-lo já, antes que a lucidez nos limite a sua descrição ou que a morte provável nos impeça de bater no teclado.
Faço noventa anos. A minha neta teve a ideia de reunir os meus amigos, de que lhe costumo falar, num restaurante aonde vou há muitos anos. Sabe que não gosto de festas surpresa nem de ter na mesma mesa gente que não pensa ou que pensa que eu penso com segundos interesses. Sou o mais velho na sala, posso dizer e fazer o que me apetece. Estão presentes, a minha viúva, dois colegas com quem trabalhei, três amigos com quem discuto há anos as questões curda e palestiniana, a redução da história à história da luta de classes, a adulteração do vinho com novas castas e a necessária abertura da sociedade à poligamia. Os restantes são gente mais nova que me acarinha a idade e me tem como uma espécie em vias de extinção ou, apenas, como um velho rabugento e ressabiado que, apesar de tudo, tem graça e não pode ouvir que lhe digam que diz umas verdades.
Falo já arrastadamente mas, como falo baixo e raramente, quando falo para um grupo toda a gente se cala ou baixa a voz, não sei se por respeito, se para me tentarem perceber, ou por me admirarem.
- Parece impossível como uma canção de melodia tão pobre e banal, uma letra tão pobre e banal, seja o tema mais universal e mais cantado por toda a humanidade nos últimos noventa anos. Ainda por cima na versão portuguesa, ela não dispensou o " a você" brasileiro. Detesto essa música! Por favor, não ma cantem!
Começam a filmar.
- E por favor também não me estraguem a festa com câmaras de vídeo. Vivam os momentos, não os guardem para viverem depois ou para mostrarem a outros que estiveram presentes quando, afinal, não participaram neles porque deles se arredaram por detrás de objetivas. Enfiem os telemóveis e as tabletes no símbolo do cobre. (- Olha! Obedeceram-me!...)
E então, do alto dos meus noventa anos, subo para cima da mesa, parto dois ou
três copos - coisa que não acontecia dantes - e começo a recitar a minha versão
da Ceia dos Cardeais.
- E vós cardeal, nunca amastes?...
E, rezada a Ceia, bateram palmas que nem uns desalmados e eu desci da mesa amparado por três deles. Todos acharam muita graça à minha récita e todos perceberam que só a viveram porque desligaram as máquinas.
No entanto, passados instantes, já todos estavam nas suas mensagens e a reclamar que eu soprasse velas e a oferecerem-me presentes embrulhados.
- Estais
preocupados com o ambiente? Então porque gastais papéis em embrulhos? E que
prendas são estas que não são livros, nem vinho, nem azeite?! Parem com as
fotos! Parem de me tratar como uma relíquia! Eu não sou nem mais velho, nem
mais novo do que vós! Sou vosso contemporâneo!
Puxo duma colher de sobremesa e tento atacar o autor da frase.
- Homem
tem calma! São jovens, não pensam!
Rabugentos
são os meus amigos! Avô, quando eu fizer noventa anos, vou fazer qualquer coisa
parecida! E quando fizer cem, ainda estou para aprender com o que vais fazer!
E não é que eu ainda durei mais dez anos!...
Regresso ao presente e embirro com a prenda da foto, ao menos que soubesse escrever o meu nome: - É com “u” seus analfabetos!
Mas pronto, pelo menos acertaram na idade.