O hotel era um imponente edifício branco
com vista para o mar. Sentiram-se transportados para outro mundo. O luxo era
esmagador para um casal habituado à simplicidade dos espaços rurais.
Certo que já tinham pernoitado no Tivoli
quando foram receber o prémio, mas nesses dias estavam anestesiados, não tinham sentidos para reparar no que viam, ouviam,
cheiravam, saboreavam ou no que mexiam.
— Isto parece coisa dum filme! — exclamou
Francisca de olhos arregalados.
Jacinto, menos expressivo, tentava manter a
compostura. Mas, quando entraram no quarto e viram a cama enorme, o minibar
recheado e a casa de banho com uma banheira cheia de torneiras, largaram uma
gargalhada e atiraram-se para cima dos lençóis macios.
Os dias seguintes foram uma sucessão de
deleites e trapalhadas. Era tudo muito lindo mas nada combinava com eles, nem o
serviço requintado, nem a comida deslavada, nem o brilho das superfícies, nem o
odor das pessoas finas. Funcionava tudo muito bem mas nada fora feito para
eles, nem as torneiras automáticas, nem os talheres tortos, nem as toucas da
piscina, nem os avisos em inglês.
A vida, fora dos aposentos, era um emaranhado
de cruzamentos com hóspedes estrangeiros que os ignoravam, mulheres de Lisboa
que de lado os olhavam, doutores de sucesso que a casta lhe exibiam, crianças
ricaças de educação de colégio que não os distinguiam, reformados velhos que
nem sequer os viam, funcionários fardados a quem só faltava dizer: os senhores
estão no hotel errado. E claro, o senhor da portaria que, depois de tanto se
perguntar “será que eles vão ter dinheiro para pagar?”, acabou por os destratar
pedindo-lhe todos os dias o cartão de crédito.
Este embate cultural, social e político de
Francisca e Jacinto, com as pessoas finas da classe dominante que se estão
sempre a queixar que pagam muitos impostos, provocou-lhes efeitos idiossincráticos
que despertaram a sua consciência de classe e alteraram o seu comportamento inicial.
Tão ricos ou mais ricos do que todos aqueles pobres de espírito com quem se
cruzavam pelos espaços do hotel, não tinham satisfações a dar a essa gente,
pegariam no garfo como queriam, beberiam demais se lhes apetecesse, dançariam
devagarinho com a música ambiente, ergueriam a voz quando fosse preciso,
falariam com muito orgulho português e, se lhes saísse a palavra “merda” da
boca, paciência, não gostam, ponham na borda do prato. Isto falaram eles ao fim
do primeiro serão, quando passaram o dia em revista, as figuras que fizeram e a
figura que passaram e redefiniram os objetivos da sua estadia.
Viventes, contentes, entre as matutices e
deslizes que experimentavam e gozavam nestes dias duma doce lua, não se
esqueceram da representação que teriam de fazer quando regressassem a Vale dos
Ovos, pelo que, o argumento da história para ser contada, era tema recorrente, recorrentemente
remendado com cunhas e apêndices, novos episódios e aperfeiçoamentos feitos à
“grande mentira” em contínua construção. O lado perverso da opção que tomaram,
ao guardar para os dois tão grande segredo, tomou tal forma, que a partir de
certa altura, a criatividade que se lhes exigia para desenvolver a ficção,
transformou-se num divertimento próprio de gente ociosa, num passatempo que
preenchia o vazio dos dias, num desafio
que, por portas travessas, os unia.
— Então, o que é que lhe perguntámos ao
certo? — dizia Jacinto, de caderno na mão, enquanto estavam deitados ao sol.
— Perguntámos o que é que ele fez da vida no
Brasil, porque nunca deu notícias… Ah! E ele explicou que passou anos a tentar
contactar-te, mas nunca conseguiu.
— Sim, sim… e agora está podre de rico porque
fez fortuna com… com quê mesmo?
— Pode ser café? Ou ouro? No Brasil há disso,
não há?
— Tem de ser algo credível, mas que ninguém possa
confirmar. Talvez negócios imobiliários. Sim, isso! O meu pai comprou terras
baratas há muitos anos e agora valem uma fortuna.
A história ia ganhando forma. Cada detalhe
era ensaiado até que ambos fossem capazes de contar a versão exata sem
hesitações.