domingo, 4 de maio de 2025

15- O caso incrível dum casal que ganhou o euromilhões

 

O hotel era um imponente edifício branco com vista para o mar. Sentiram-se transportados para outro mundo. O luxo era esmagador para um casal habituado à simplicidade dos espaços rurais.


Certo que já tinham pernoitado no Tivoli quando foram receber o prémio, mas nesses dias estavam anestesiados, não tinham sentidos para reparar no que viam, ouviam, cheiravam, saboreavam ou no que mexiam.


— Isto parece coisa dum filme! — exclamou Francisca de olhos arregalados.

Jacinto, menos expressivo, tentava manter a compostura. Mas, quando entraram no quarto e viram a cama enorme, o minibar recheado e a casa de banho com uma banheira cheia de torneiras, largaram uma gargalhada e atiraram-se para cima dos lençóis macios.

Os dias seguintes foram uma sucessão de deleites e trapalhadas. Era tudo muito lindo mas nada combinava com eles, nem o serviço requintado, nem a comida deslavada, nem o brilho das superfícies, nem o odor das pessoas finas. Funcionava tudo muito bem mas nada fora feito para eles, nem as torneiras automáticas, nem os talheres tortos, nem as toucas da piscina, nem os avisos em inglês.


A vida, fora dos aposentos, era um emaranhado de cruzamentos com hóspedes estrangeiros que os ignoravam, mulheres de Lisboa que de lado os olhavam, doutores de sucesso que a casta lhe exibiam, crianças ricaças de educação de colégio que não os distinguiam, reformados velhos que nem sequer os viam, funcionários fardados a quem só faltava dizer: os senhores estão no hotel errado. E claro, o senhor da portaria que, depois de tanto se perguntar “será que eles vão ter dinheiro para pagar?”, acabou por os destratar pedindo-lhe todos os dias o cartão de crédito.


Este embate cultural, social e político de Francisca e Jacinto, com as pessoas finas da classe dominante que se estão sempre a queixar que pagam muitos impostos, provocou-lhes efeitos idiossincráticos que despertaram a sua consciência de classe e alteraram o seu comportamento inicial. Tão ricos ou mais ricos do que todos aqueles pobres de espírito com quem se cruzavam pelos espaços do hotel, não tinham satisfações a dar a essa gente, pegariam no garfo como queriam, beberiam demais se lhes apetecesse, dançariam devagarinho com a música ambiente, ergueriam a voz quando fosse preciso, falariam com muito orgulho português e, se lhes saísse a palavra “merda” da boca, paciência, não gostam, ponham na borda do prato. Isto falaram eles ao fim do primeiro serão, quando passaram o dia em revista, as figuras que fizeram e a figura que passaram e redefiniram os objetivos da sua estadia.

 

Viventes, contentes, entre as matutices e deslizes que experimentavam e gozavam nestes dias duma doce lua, não se esqueceram da representação que teriam de fazer quando regressassem a Vale dos Ovos, pelo que, o argumento da história para ser contada, era tema recorrente, recorrentemente remendado com cunhas e apêndices, novos episódios e aperfeiçoamentos feitos à “grande mentira” em contínua construção. O lado perverso da opção que tomaram, ao guardar para os dois tão grande segredo, tomou tal forma, que a partir de certa altura, a criatividade que se lhes exigia para desenvolver a ficção, transformou-se num divertimento próprio de gente ociosa, num passatempo que preenchia o vazio dos dias, num  desafio que, por portas travessas, os unia.

 

— Então, o que é que lhe perguntámos ao certo? — dizia Jacinto, de caderno na mão, enquanto estavam deitados ao sol.

— Perguntámos o que é que ele fez da vida no Brasil, porque nunca deu notícias… Ah! E ele explicou que passou anos a tentar contactar-te, mas nunca conseguiu.

— Sim, sim… e agora está podre de rico porque fez fortuna com… com quê mesmo?

— Pode ser café? Ou ouro? No Brasil há disso, não há?

— Tem de ser algo credível, mas que ninguém possa confirmar. Talvez negócios imobiliários. Sim, isso! O meu pai comprou terras baratas há muitos anos e agora valem uma fortuna.


A história ia ganhando forma. Cada detalhe era ensaiado até que ambos fossem capazes de contar a versão exata sem hesitações.

domingo, 27 de abril de 2025

14- O incrível caso dum casal a quem saiu o euromilhões


Retomemos agora a composição do capítulo do reaparecimento do pai de Francisca e passemos à ação. Se o homem entrou aqui, que não nos sirva apenas para justificar a súbita saída da filha e do genro da condição de pobres mas que se aproveite a sua vinda à cena para encobrir outras extravagâncias como, por exemplo, umas férias, as primeiras férias dignas desse nome.

Ainda chegaram a pensar contar a ausência numa viagem imaginada ao Brasil mas era conto que exigiria muito cuidado e muita arte na invenção, pelo que se limitaram a uma estadia na capital, para ver o pai cógnito, ouvir explicações, cheirar património, tatear afetos, saborear a família, reunir os sentidos das suas vidas. Nos termos da linguagem corrente assim foi explicado o encontro e encontrado o novo argumento que os tiraria de Vale do Ovos por uns dias.

 

— Ele vem cá a Lisboa mas não quer vir cá à terra porque ainda devem estar vivas umas pessoas que não quer ver. Quer ver-me, diz que tem uma coisa para me dar!

— Já deve estar velho o Marçal.  Ele tem é vergonha daquilo que te fez!

- É melhor não pôr aqui os pés, fugiu para o Brasil e ficou a dever muitos réis a muita gente, um deles foi o meu falecido pai!

- Pede-lhe dinheiro filha, tu não te acanhes! Ainda por cima, agora sem o Jacinto a trabalhar!

- Ná! Vindo de quem vem, isso traz água no bico! Conheci ainda bem o Marçal Marques! Vê lá é se ele não te vem pedir dinheiro a ti!

- Seja o que Deus quiser, que ele nos arranje estadia e comida por estes dias já não é mau. Na volta vamos aproveitar para o Jacinto ir a uma consulta. Haja saúde para trabalhar que dinheiro não nos há de faltar!

 

Estes diálogos acabavam por lhes trazer alguma tranquilidade e, chegado o dia, informaram os “interessados” da partida, prepararam a mala com entusiasmo, não sendo, como sabemos, o destino a capital. Compraram o bilhete para Lisboa, não fosse o chefe da estação dar com a língua nos dentes, mas saíram no Setil e daí seguiram para o Algarve. Para que terra, para que praia, para que hotel, logo se veria, já tinham ambos apanhado o jeito de usar cartões bancários e já se tinham habituado a reações de quem estranhava despesas consideráveis num casal com tão pobre figura.

Enquanto por lá andassem pensariam no que iriam contar sobre o encontro entre pai e filha, agora era o Alentejo que passava na janela do comboio como se ela fosse uma televisão e o Algarve só seria real quando lá pusessem os pés no chão. Tudo rimava sobre carris.

 

- O senhor revisor importa-se de nos avisar quando chegarmos à estação do Algarve?

Apercebendo-se que não estavam a brincar, o funcionário explicou-lhes com rara complacência e simpatia o equívoco da pergunta e, para primeira vez, recomendou-lhes Quarteira se quiserem gastar pouco, Albufeira se tiverem muito para gastar.

- Muito obrigado! Avise-nos então, se faz favor, quando chegarmos a Albufeira!

- O meu colega do Setil, como lhe devem ter dito que queriam viajar para o Algarve, passou-lhes um bilhete para Tunes. Nesse caso tenho do vos vender um suplemento para irem até Albufeira!

- Fique com o troco!

O revisor ficou com o troco e ficou de boca aberta, nunca na vida tinha recebido tão generosa gorgeta.

 

O mesmo viria a acontecer com o taxista, que se viu na inédita situação de escolher o hotel para os clientes.

- Pode ser caro! Queremos é descanso e boa vida!

De mãos cheias com a generosa gorgeta, cheio de amabilidades com malas e acessos, nunca deu com tanto prazer um cartão com o seu contacto:

- É só ligarem! Estarei aqui à porta em poucos minutos!

domingo, 20 de abril de 2025

13- A história incrível do casal que recebeu o euromilhões.

Depois, Francisca começou a exteriorizar satisfação com o novo teatro que teriam de representar.

 

- É perfeito. Ninguém vai desconfiar.

-
E, já agora, tenho de ficar curado para poder beber umas cervejas no café. Por isso, a começar com uma nova história, com riqueza suficiente para não termos de trabalhar, que ela fique completa com a alta médica e eu não tenha de continuar a fingir que estou doente.

-
Se for do coração podes começar a beber, mas com moderação. É melhor manter a história da doença, precisamos de ter um plano B que passe por uma reforma por invalidez, não dá para grandes
gastos mas
dará pelo menos para justificar o facto de não trabalhares.

Era frequente a perspicácia de Francisca deixar o companheiro desarmado. Durante os dias seguintes, foram montando a nova trama com minúcia. Não só pelo prometido, mas também por conveniente, o primeiro a ser enrolado teria de ser o Abílio, que dali espalharia, pela freguesia, as explicações.
Afinal não era filha, mas o avô dela, a fonte do farto rendimento que agora os alimentava. Foram tão
surpreendidos
pelo reaparecimento do desaparecido, que acautelando a hipótese de virem a ser vítimas do conto ou da hipnose de algum vigário, receando passar pela vergonha de enganados, puseram o nome da filha, como rica, no barulho, a desgraçada que, segundo
Paleco
, não tem um palmo de
Luxemburgo
onde cair morta.

Primeiro, receberam um telefonema dum suposto detetive
privado mas
nem queriam acreditar. Depois receberam um telefonema do pai de
Francisca mas
nem queriam acreditar. Depois foi-lhe pedido o número duma conta bancária, pelo sim, pelo não, abriram conta, mas continuava-lhes a custar a acreditar. Quando foram confrontados com o primeiro depósito, ficaram tão assustados que não contaram a ninguém. Ao fim de tantos anos, o pai de Francisca dava notícias e eram boas, como confirmava o extrato.

-
E quer conhecer-me pessoalmente!

A princípio, a história foi recebida com cautelas e surpresa, mas rapidamente passou a ser assunto entre amigos, vizinhos, conhecidos e até entre outros, que atraídos pelo gosto pelo insólito, não conhecendo o casal, o passaram a conhecer por referências travessas, dedos indicadores pouco discretos ou até mesmo, forçando diálogo com os próprios para recolher mais dados.

— Coitada, tantos anos sem saber nada do pai, e agora descobre que ele sempre se lembrou dela — comentava a vizinha, abanando a cabeça com um misto de pena e curiosidade. Antes de nos enfiarmos com o casal na nova mentira em construção, paremos um pouco o guião para um aparte devido e que já tarda. Nos tempos em que a representação da imagem era exclusivo dos pintores, os escritores desenvolviam a arte das palavras, davam voltas ao texto, estendiam linhas, para descrever um rosto, um corpo, uma rua, uma paisagem e ainda deixavam um espaço vazio de liberdade para os leitores preencherem com a sua própria criatividade. Hoje, em plena era da imagem, uma foto, um filme, uma reportagem, resolvem tudo num instante, sem ser preciso o escritor cansar-se em prosa ou o leitor gastar pestanas.
Assim sendo, seria fácil inserir aqui duas ilustrações para representar cada um dos membros do casal a quem saiu o euromilhões e pronto. Era mais fácil para o dono das personagens e para quem tem o direito de as conhecer, mas querendo-se a história tomada como verdadeira, levantaria questões de segurança.

Além disso, por alguma razão, mesmo os romancistas da era tecnológica, por hábito, não se desviam para o facilitismo dessa solução, pelo que, como pretenso escritor, terei de
me fazer
ao prometido há páginas atrás, pegando em mãos a trabalhosa tarefa de desenhar por palavras alguns traços dos físicos de Jacinto e Francisca e deixando à imaginação dos leitores o que ficar em falta. Para já, vamo-nos cingir ao tempo de antes-prémio, porque agora, com dinheirinho a rodos, mais tempo e mais passeio, estavam em fase de experimentação e acomodação a novos visuais.

Jacinto pesava sessenta e cinco quilos bem pesados, um metro e sessenta e cinco, olhos frágeis e acastanhados, cabelo castanho, despenteado e avantajado, sobrancelhas despenteadas, testa bem encaixilhada, barba feita mesmo agora, de três dias, duma semana ou até dum mês, se os há, nariz perfeito, boca de sorriso ao léu, bochechas graciosas, orelhas quanto baste, pescoço equilibrado, nuca arredondada, ombros levantados, barriga discreta, pernas de bom andar, seria um tipo normal e bem-parecido se não andasse quase sempre desgrenhado pelo uso do capacete e não vestisse o que viesse à rede na tenda do cigano. No trabalho usava um boné do Zé do Talho e aos domingos de manhã tomava banho e compunha-se melhor.
Francisca pesava quase setenta, andava pelo metro e setenta, olhos verdes, cabelo ruivo pelo ombro e frequentemente
desmelenado
, não era feia, tinha um rosto de traço atlético, robusto e meio feliz, lábios curtos, riso contido, a testa lisa, a nuca aplainada, pescoço de se beijar, ombros diligentes, curvas com a sensualidade traída pelo traço atlético replicado da cara, usava sempre calças pelo que das pernas apenas se pode dizer
que andavam
e
deviam de
ser carnosas. Vestia da feira, pensava a cor mais do que o corte, as calças eram mais de ganga do que outra coisa, vestido não se lhe conhecia há muito, que isso de convites para casamento e batizados já dera uvas.

domingo, 13 de abril de 2025

12- A incrível história dum casal que recebeu o euromilhões.


Iam assim os dias do casal milionário, ainda sem plena consciência do valor dos milhões que tinham em depósitos, saboreando o desafogo financeiro, mas ainda engaiolados no medo e no segredo.

— Quanto tempo vamos conseguir viver assim? A fazer de conta que não temos nada?

— O que queres dizer?

— Quero dizer… não faz sentido termos tanto dinheiro e continuarmos a viver como se fôssemos pobres.

Ela suspirou.

— Eu sei. Mas se começamos a gastar de repente, toda a gente vai desconfiar. Não te lembras do que aconteceu ao teu primo Toino?

O António era um exemplo conhecido em Vale dos Ovos. Há uns anos, tinha saído para França em busca de uma vida melhor e, quando regressou, apareceu com um carro novo, roupas caras e pôs-se a fazer uma casa estilo “maison”, com janelas “ à la fenêtre” e telhados para a neve, só lhe faltou pôr suportes para colocar os esquis no hall de entrada.. Mas a inveja e os rumores foram tantos que, em pouco tempo, começou a ter problemas. Diziam que se metera em negócios escuros, que devia dinheiro a agiotas. O falatório foi tanto que António acabou por vender tudo e ir-se embora de vez.

— Sim, lembro-me — respondeu o Jacinto. — Mas também não podemos viver como miseráveis. Há coisas que podemos melhorar sem dar nas vistas.

- Então mas não estamos a gastar muito mais do que gastávamos?

- Sim, mas não estamos, nem de perto, a gastar de acordo com o que temos!

- Vamos com calma! Para já vamos aguentar a versão que a Lúcia nos está a ajudar! Depois inventamos outra!

 

Pois, tinham mesmo de inventar outra, havia mais gente de Vale dos Ovos no Luxemburgo. Um deles, o Paleco, veio cá uns dias, esteve no café da estação. Contou que estava perto do Alberto, que via a Albertina todos os domingos à saída da igreja, que o Joaquim trabalha com ele, que a Joaquina tem os filhos na mesma escola, que o Costa está muito bem, tem um café, a coisa não está muito bem é para a Lúcia, a filha da Francisca, passa lá por muitas dificuldades, o gajo embebeda-se e ela vê-se negra para pagar a escola do filho!...

Abílio, primeira testemunha da surpreendente contradição entre o discurso do casal sobre a origem do seu repentino desafogo e as informações fresquinhas do Paleco, recorreu à sapiência de tantos anos a encher copos e engoliu para digerir mais tarde. Como só ele ouvira, aguardaria para testar se o Paleco contaria a mais alguém e, em função disso, moldaria a sua posição pública sobre o assunto.

Uns dias mais tarde, constatando que ninguém trouxera o nome da Lúcia à conversa no café, e tendo já Paleco passado além dos Pirinéus, Abílio mostrou-se amigo de Jacinto e confrontou-o em tom paternal, em privado, com o que não batia certo e queria explicações.

 

Jacinto engasgou-se com o carioca de limão e aproveitou o tempo do engasgo para um raciocínio rápido que o teria de livrar de pôr os pés pelas mãos e dar-lhe as palavras certas para acalmar o inquiridor.

- Ora Abílio, isso é uma longa história! Graças a Deus que, no meio de tanta desgraça, eu e a Francisca temos tido uma ajuda, que não é pequena, mas que ainda não podemos dizer de onde vem. Não contes por favor a ninguém a conversa do Paleco que eu prometo-te que serás o primeiro a saber a verdade.

 

Quando Jacinto, regressado a casa, contou à Francisca o percalço, esta estremeceu em pensamentos por ter recebido notícias menos felizes da vida da filha emigrada – teria de arranjar maneira de a ajudar – mas não questionou a insensibilidade de Jacinto, que parecia apenas preocupado com o facto da mentira ter perdido a validade. Era necessário inventar uma nova mentira com crédito assegurado e, já agora, que desse para poder mostrar a carteira ainda mais cheia.

 

A ideia surgiu na noite abafada e já longa, enquanto partilhavam um copo de vinho ao calor da lareira. O silêncio da aldeia envolvia a casa como um manto pesado e, o peso da manta dos milhões, embora os fizesse sentir agazalhados e protegidos, pesava-lhes cada vez mais.

— A aldeia sabe da história do teu pai — disse o homem, rodando o copo entre os dedos.

A mulher ergueu os olhos.

— Sim, todos sabem. Que ele fugiu para o Brasil depois da morte da minha mãe pelo meu parto.

Jacinto abanou a cabeça positivamente preparando o espaço para a próxima deixa:

— E se… e se ele tivesse entrado em contacto contigo? Se, depois de tantos anos, te tivesse procurado, cheio de arrependimento?

Francisca franziu a testa, tentando acompanhar o raciocínio do companheiro.

— Estás a dizer que…

— Que o teu pai fez fortuna. É, sem exageros, dono de meio Brasil e agora quer compensar-te por te ter abandonado. Pôs uns detetives à tua procura, encontrou-te, vai telefonar-te e começar a enviar carcalhol a rolos. Quem sabe, vai até querer que a gente vá ao Brasil!...

Houve um momento de silêncio, enquanto a ideia se instalava entre os dois. Depois, Francisca começou a exteriorizar satisfação com o novo teatro que teriam de representar.

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Milagre do diabo


Amarida Cruz tinha licença da câmara da vila para o negócio. Carregava os ceirões à burra com uma mesa de duas gavetas - uma para os trocos e para o que desse, outra para os panos e para o que viesse – duas garrafas de aguardente, dois garrafões de vinho, meio alqueire de tremoços, um pacote de café de cevada e outro de açúcar, uma caixa de fósforos, uma cafeteira, um jarro, seis copos, meia dúzia de chávenas, uma colher para cada par, um alguidar e uma bilha para a água. Se vendesse tudo seria dia grande.


Fazia o mercado de segunda, os dois, os doze e os vinte e quatro, arraiais de santos e enfeites de merendeiras, saídas de missa e o são joão.

Tomara este negócio para somar aos “dias fora” porque perdera a força do marido que, ainda por cima, a deixara de meses. Ao malvado tinham-se-lhe enfiado umas ideias na cabeça, não ia à missa nem à confissão, dizia mal do Salazar e lia livros que não eram da igreja. Por estar possesso de ideias que não lembravam ao diabo acabou preso e deportado para África ou para a Índia, sabia-o ela mas não o povo que o tinha como morto num descarrilamento. Soube a mulher aproveitar a coincidência da data do desastre com a do embarque onde, por excepcional concessão da polícia, teria ido despedir-se do demónio, regressando à terra em falso luto e de lágrimas teatrais - “ficou todo desfeito! nem foi possível fazer-se funeral!”.

Com tamanha mentira seria mais fácil voltar a ter homem do que se soubessem vivo o desgraçado que ela tinha de esquecer. Não teve a sorte de outro mas fez do filho um braço de trabalho! Não estava para o perder ao serviço do exército ou do Carmona. Chegada a idade da inspecção ensinou-o a ter um dedo torto e advertiu-o vezes sem conta para que se eles lhe perguntassem como ele o tinha antes não se descaísse e o mostrasse direito.

Regressou o grupo de mancebos do quartel, em dia de domingo, depois de uma noite de folia sem pregar olho como era tradição, ao largo da igreja, ainda havia gente de finais de missa. Uns contentes porque apurados e dois a pagarem rodadas por ficarem livres. Eufórica com a esperteza que transmitiu ao filho, pagou ela própria não recebendo dinheiro para a gaveta e ela própria apanhou uma piela de caixão à cova. Foi bem torcida que, sensibilizada pela sede dos rapazes e tendo a venda toda já esgotada, se virou para o filho do sacristão, o outro safo por não conseguir dobrar a língua, e lhe disse também de língua enrolada:

- E tu não pagas nada?! … Sabes bem onde há vinho na igreja!... Vai lá que a esta hora já está tudo a almoçar! Ninguém vai ver!

Estava a garrafa roubada a passar de boca em boca quando um homem, vindo do lado da estação se aproximou! Amarida da Cruz não teve dúvidas! Era o diabo do homem que voltava!

Deu três passos cambaleantes para trás, deu de traseira no tanque do chafariz do largo e, antes de bater com o traseiro na água, gritou alto:
- Milagre!!!
- Pôla! Robê pinga já consagada!

domingo, 6 de abril de 2025

11- A história incrível dum casal vencedor do euromilhões.

 

A casa, herdada da avó, tinha sido já dos bisavôs mas resistira ao tempo. Duas águas, uma porta ao meio, uma janela de cada lado, cozinha, sala, dois quartos e uma casa de banho desalinhada da arquitetura porque construída mais recentemente, na época em que o banho se popularizou e a água canalizada trespassou paredes. Num alçado lateral, um alpendre em chapa zincada protegia a entrada de serviço, a da cozinha, e ainda dava para abrigar a motorizada. A traseira da casa apoiava um telheiro para a lenha, ferramentas e o que calhasse. Ao fundo da cerca do quintal, à guarda do cão acorrentado, existiam uns currais para galinhas, coelhos, rolas e outra miudagem animal, sobrando ainda espaço para uma horta de subsistência, uma figueira, dois pessegueiros, uma macieira e uma latada de uvas de comer.

- Amanhã vou fazer uma lista: reparar o curral das galinhas, arranjar um alpendre para a mota, fazer uma estufa, isso mesmo, vou fazer uma estufa!

- Não te esqueças de falar ao Jápintas para pintar o quarto e a sala e ao Bucha para nos vir instalar um esquentador!

À noite, quando se deitavam, ficavam em silêncio por longos minutos, cada um perdido nos seus próprios pensamentos.

 

Agora compreendia que a vida dos ricos que não trabalhavam não era tão fácil assim. A tristeza que não é uma pessoa não ter nada para fazer, andar para aqui e para acolá à procura dum serviço que lhe ocupe a tarde.

- Ora Jacinto, os ricos sabem pôr o corpo ao sol, jogar xadrez e andar de avião… gostam de ler livros, ver filmes e bailados, fotografar monumentos e dormir em hóteis com vista!...

- E também jogam no casino e fazem festas de arrebentar!... Um dia destes vou é voltar a trabalhar! No café é sempre a mesma coisa: uns jogam cartas ou dominó, isso para mim são jogos de garotos! Outros olham para a televisão a ver futebol, eu não gosto de futebol! Ler o Correio da Manhã? Aquilo é só mentiras! O Abílio é sempre a mesma conversa, “ó Jacinto é branco ou tinto?” brinca ele um dia, para no dia a seguir me repreender como se eu fosse uma criança, “não voltas a entrar aqui a fumar!”

A única coisa que sei fazer é trabalhar! Pensas que isto é fácil? Tu já estavas habituada a não fazer nada! … Agora eu!...

- O caralho que te foda!...


Sabemos que cai aqui mal esta linguagem mas perante tal impropério de Jacinto, Francisca tinha de reagir de imediato. Sem tempo para pensar outra reação, saltou-lhe a tampa, soltou-se-lhe a língua, ferveu de indignação e saiu-lhe a resposta curta e concisa no mais imprópio par de palavrões do vernáculo nacional. Até o autor foi surpreendido, sem tempo para dar a volta ou texto ou cordões para trair a realidade de modo que, pede desculpa e promete dar continuidade à narrativa em modos próprios.

 

Doméstica era apenas uma palavra quando tinha de responder ou escrever a profissão. Mas não bastava “doméstica” ser já o cabo dos trabalhos, Jacinta trabalhava ao dia fora muitos dias, contribuindo para a casa, às vezes quase tanto como o homem. Plantar batatas para esta, ir prá vindima daquele, apanhar azeitona para os demais, servir numa boda de casamento, fazer de criada ao regimento daquela que pariu, caiar os muros dum vizinho, dar uma limpeza geral à casa dos que vêm de férias, tratar do gado dos que foram dar uma volta, trabalhadora para todos os serviços menos para um.

- Olha, eu sinto-me bem folgada e não me importo de viver assim o resto dos meus dias! Se não me queres fazer companhia, vai trabalhar que eu ainda tenho cara e cintura para arranjar um rapaz mais novo que tu! E então agora com dinheiro! Se o trabalho nas obras fosse assim tão duro, não estarias com essa conversa de voltar ao trabalho! Hoje em dia vocês têm máquinas para fazer tudo: gruas, guinchos, porta-paletes, betoneiras, martelos elétricos, berbequins, escavadoras, vibradores. Esfregar! Esfregar é que é trabalho duro!

Jacinto pegou nestas palavras, “esfregar”, “duro”, “trabalho” e jogou com elas confundindo provocação com sedução. Francisca riu-se, já sabia o que se gastava em casa, não ia cair novamente no uso desnecessário das palavras feias, isso é coisa de pobres! Sentiu-se suficientemente rica para poder dizer ao companheiro de leito:

- Vamos mas é dormir que amanhã podemos não ir trabalhar!

Jacinto mordeu a língua num pensamento de contentamento, quer ela dizer que amanhã podemos… podemos… podemos trocar o pê pelo fê…

domingo, 30 de março de 2025

10- A incrível história dum casal vencedor do euromilhões.

Retomemos então ao ponto em que íamos fechando este parentises, aos dias seguintes, ao regresso de Lisboa e da Santa Casa.

Ele deixou de ir trabalhar, passaram a ser pouco vistos e quando vistos, sempre de afetos um com o outro, pediram a um ou outro um empréstimo da ordem das dezenas, garantindo por juras e juros a sua devolução e o povo foi entregando a sua pena e compreensão ao desgraçado acometido pela doença, certamente grave pois não trabalhava, e a ela coitada que poderia ficar viúva e sozinha, em idade avançada para haver quem lhe pegasse, se tal viesse a acontecer.

Dentro deles, crescia o segredo sufocante. Era difícil falarem com os outros e, entre eles, o tema repetia-se interrompendo os seus semblantes introspetivos, até que, ainda não tinham passado três semanas, receberam a visita duma psicóloga e dum técnico da Santa Casa - uma enfermeira e um médico na versão para consumo da vizinhança. Não havia outro remédio se não confiar em alguém, a senhora doutora iria acompanhá-los nas questões emocionais e o senhor doutor iria tratar do processo de distribuição inicial dos depósitos por várias instituições bancárias sem que eles tivessem de dar a cara. Mais tarde, desfeita a montanha em montes por questões de segurança ou discrição possível, poderiam então tomar nas suas mãos o seu património financeiro ou entregar a sua gestão a alguém que lhes merecesse crédito.

 

Depreende-se que no tempo decorrido, ainda a fortuna não tinha acrescentado qualquer prazer extra ou laivo de felicidade às suas vidas, pelo contrário, o esforço para conter tamanho segredo e o medo de serem extorquidos, atazanava a sua pacatez. Tornavam-se assim longos os dias, ainda mais longos por não se trabalhar para além de fazer a comida, comer e dar comida aos animais e por se recear a vida social. Ainda por cima a simulação da doença não permitia a Jacinto chegar ao balcão do Abílio e beber uns copos para se distrair e a suposta continuação das dificuldades económicas, não dava para Francisca ir espairecer comprando isto e aquilo na mercearia da Júlia ou fazer como outras vizinhas que volta e meia gastavam uma tarde na Graça cabeleireira.

Mas pronto, esta visita do médico e da enfermeira, aqui para nós, técnicos da Santa Casa, seria para os ajudar a ultrapassar esta fase inicial em que não se sentiam minimamente preparados para lidar com a fartura financeira que deles se apoderou.

Depois de feita a aprendizagem de trabalhar com os bancos – uma ida ao banco era sempre justificada como uma consulta ou um exame médico - começaram a saldar as dívidas e a pagar tudo prontamente. Não ficou esquecida a generosa e secreta transferência para os “bem vestidos” da Santa Casa que os atenderam e desenrascaram em Lisboa.  

Para este súbito desafogo económico encontraram a justificação perfeita para enganar amigos e conhecidos: a filha dera sinais de si e estava tão bem na vida que lhes mandava algum dinheiro para os ajudar. Não era um argumento para fazer despesas na ordem do que os seus depósitos bancários mereciam, mas pelo menos permitia calar o povo que exige satisfações quando alguém próximo tira o corpo da miséria e começa a viver a vida que toda a gente merece.

- Talvez… talvez possamos fazer pequenas mudanças, devagarinho. Começamos por trocar algumas coisas da casa, mas nada de luxos exagerados.

- Sim, e podíamos comprar uma televisão melhor. A nossa já tem quase vinte anos…

A mulher sorriu.

- Sim, uma televisão ninguém estranha.

Assim começou o jogo da cautela.

Nos dias seguintes, foram fazendo pequenas aquisições: primeiro, uma televisão nova. Depois, uma mesa de madeira para a cozinha, já que a antiga estava torta há anos. Mas cada compra vinha sempre acompanhada de uma explicação bem pensada para os vizinhos.

-  A televisão? Comprámos em segunda mão, uma pechincha! - diziam quando alguém perguntava.

-  A mesa? Já andávamos a juntar dinheiro para isto há tempos - acrescentavam.

Contrariamente ao que seria de esperar o casal estava até a entender-se muito bem. Dir-se-ia que o pacto do “não dar nas vistas” estava a funcionar lindamente. Estas pequenas despesas eram normais para quem tinha descendência bem emigrada.

Toda a gente aceitava que era normal que, por causa da doença saíssem algumas vezes, que por terem pouco para fazer fossem muitas vezes passar a tarde à praia dos pobres, a nascente do Agroal, que fossem outras tantas vezes a Fátima pedir velas de saúde à Santa e fossem a feiras, mercados e festejos para passar o tempo.

- Quem diria que a galdéria da Lúcia iria endireitar a vida a ponto de auxiliar os pais desta maneira?



domingo, 23 de março de 2025

9- A história incrível dum casal contemplado com o euromilhões.

Como último favor, chamaram táxi para os ir buscar ao 194 da Avenida da Liberdade, com discretas despedidas para não levantar suspeitas. 

Jacinto limpou os pés no tapete de entrada do prédio antes de descer para o passeio da avenida, sinal de que ainda não tinha os pés bem assentes no chão.  Francisca e os “bem vestidos” sorriram compreensivamente.

Acontece que por si, o número da porta já dá uma pista para o taxista que conhece a Avenida como a palma da mão e, vai daí, ainda os assustou: - Foi muito?!...

Foi muito o sarcasmo e muito o descaramento pelo que, depois do choque inicial, o casal acabou por reagir dissimuladamente, fingindo não perceber, não dando troco, dando um par de sorrisos com ar torto, não dando confiança ao pobretanas que passava o dia acravado no inferno do trânsito da cidade grande.

Ainda por cima era burro, alguma vez, se fosse o caso de terem ganho um grande prémio, iam para Santa Apolónia apanhar um comboio para Vale dosOvos?!

 

Sentiram alívio quando finalmente se viram sentados na carruagem. Agora a sensação era completamente diferente da viagem para Lisboa. Não havia tanta ansiedade nem incerteza, mas sim um peso invisível sobre os seus ombros. Sabiam que estavam prestes a enfrentar o maior desafio das suas vidas: esconder a fortuna de uma aldeia inteira habituada a saber da vida de todos.

— Vamos manter tudo igual, ouviste? Nada de gastos exagerados, nada de mudanças bruscas. Se começamos a comprar coisas caras, toda a gente vai desconfiar.

Jacinto assentiu.

— E se alguém nos perguntar por onde andámos estes dias?

— Dizemos que estiveste internado! Não saiste de casa de ambulância? Quando chegarmos vamos logo diretos ao café para parecer tudo normal e evitar falatórios.

 

Entraram no seu café de todos os dias como se nada tivesse mudado, como se continuassem a ser os mesmos de sempre. Um grupo de fregueses jogava às cartas mas mostraram as orelhas quando o Abílio disse do lado de trás do balcão:

— Então? Ouvi dizer que estiveste no hospital! Pela tua cara já estás pronto para voltar ao trabalho!

A mulher sorriu com naturalidade.

— Oh, foi um susto mas julgamos que já passou. Coisas do coração! Trabalhar é que por enquanto… está quieto! Por agora vai ficar de baixa.

Jacinto não disse nada. Sempre fora pior a mentir do que a Francisca e agora sentia que qualquer palavra a mais podia estragar tudo.

Tomaram o caminho de casa a pé, sentindo os olhares curiosos de vizinhos, a mulher dando conversa a este e àquele acerca da convalescença e da doença do marido, e este sempre calado com o ar empedernido de quem acabou de sair dum internamento.

Agora que a incrível história deste casal que ganhou o euromilhões já vai em andamento, convém tomar conhecimento das origens destas personagens, aqui caídas somente por terem ficado ricas sem ser à custa de outros, sem corpo, sem feições e sem passado. As mãos do narrador não estão, por agora, viradas para dar formas físicas ao homem e à mulher mas exige-se que, ao fim de duas mãos de dias deste enredo, de Francisca e Jacinto se saiba alguma coisinha da sua história “antes-prémio”, já que do futuro haverá ainda muito a contar ou não estivéssemos aqui senão para outra coisa.

Saiba-se então que Francisca ficou orfã de mãe pelo seu parto e o pai, safado, safou-se da criar e desapareceu, segundo lhe vieram a contar já crescidita, fugiu para o Brasil ou para lá perto.

Foi criada numa instituição para meninas em Tomar, onde, chegada à adolescência, se tornou indomável, transgredindo regulamentos, desaparecendo à noite, estabelecendo contactos com pessoas pouco recomendáveis, uma dor de cabeça para os responsáveis pela casa.

Foi nessas aventuras que conheceu Jacinto, já ambos nas raias da maioridade.

Jacinto viera há poucos meses para a zona, vindo dos lados de Castanheira, trazido para trabalho duro por um empreiteiro de obras viárias, fugindo a um lar disfuncional, o pai alcóolico que desde pequeno o carregava de porrada, um irmão deficiente e a mãe, desistente do direito a momentos de alegria, acabrunhada, rendida ao destino, sem amor para dar, apenas presença.

Foi neste contexto que ambos se identificaram e se uniram, juntaram-se e ocuparam a casa velha da avó materna de Francisca, nas imediações de Vale dos Ovos, sua única herança, conjuntamente com dois palmos de terra e uns currais velhos ao redor. O pai, quem sabe ainda vivo em S.Paulo ou em Manaus, nada deixara, tudo indicando que, tal como Jacinto, caíra por ali como forasteiro, trazido para obras de melhoramento na linha férrea.

Ainda não tinham vinte anos quando lhes nasceu a filha que,  com os genes dum ou de outro, por sina, acaso ou má criação, desapareceu prematuramente do convívio familiar, já o contámos. Antes que nos esqueçamos, deixemos, ainda o seu primeiro nome, Lúcia, pois, só podia ser, se atendermos ao nome dos progenitores.

sexta-feira, 21 de março de 2025

Mais um dia mundial - desta vez é o da poesia.

Não sei porquê, nem me interessa, nem acho piada,
Mas hoje é Dia Mundial da Poesia.
Reparem que mudei de linha para parecer verso
e vou fechar com a rima "é dia".

Volto a repetir: é dia!
Hoje é dia de passear com ela
Porque é o seu dia.
Já que nunca encontro um pretexto para falar de poesia,
Já que há muitos anos que perdi o estado de poesia,

Podem não achar piada mas esta rima entrelaçada

Pode ser considerada  uma poesia de nada.
Para ler  por quem não tem mais nada para fazer
Escrita por mim. Sim. 

Vou dar uma volta com ela. Com a poesia! Ainda não sei se a levarei presa por uma corda, como quem leva a vaca à fonte, ou se a levarei presa por uma trela como quem leva a cadela a defecar a monte. Ou então irei sozinho ver as árvores, os cães, as vacas e as pessoas. Talvez nesses encontros eu possa refletir acerca da forma como eu, se fosse poeta, traduziria os sentimentos em poesia.

Chega! Já disse o suficiente para assinalar o dia.
Apetece-me um verso! Mas não tenho pão em casa e um verso sem pão não tem graça!
Uma sandes de versos ia! Uma poetisa ia...
Não vou a lado nenhum com esta prosa!
Vou beber um copo para embebedar a poesia! Talvez com vinho ela vença a timidez
E desabroche! Chega não se diz! Basta! Não tem graça!

Omar Vignole - escritor e poeta argentino que se costumava passear com um vaca, aqui referido por Pablo Neruda.




quarta-feira, 19 de março de 2025

Um negócio sério

- Gostava que viesses comigo!

Eu tinha vindo a casa passar as férias de Natal de 75, sou de 62, tínhamos acabado de jantar, vesti a gabardine e fui com ele a pé, lugar abaixo, à casa de fulano tal que servia de intermediário de sicrano. 

Abriu-se a porta, sentar, beber alguma coisa, alguma conversa trivial e deu-se início ao ato de negociar. 

Não era um negócio qualquer como vender dois quarteirões de pinheiros, trabalhar à troca ou comprar uns leitões, íamos adquirir o primeiro automóvel da família. Já conhecíamos aquele Hillman de vista, as mãos do dono e a sua seriedade, sabíamos que era carro com condições para ir à Nazaré, à Batalha, a Fátima e à missa de domingo, o montante é que era o delas! 

Quando se chegou aos 13 contos o meu pai olhou para mim  e eu, primeiro pensei que ele tinha achado graça à coincidência de ser a minha idade mas não, ele estava a indagar silenciosamente pela minha concordância.

Fechado o negócio, voltámos para casa a pé, mas com carro comprado, e todos sentimos que havia mais um homem na família.  

Anos mais tarde, já o Hillman IMP tinha dado lugar a outro e não tinha direito a garagem nem a grande futuro, aprendi a conduzi-lo. Desafiei o meu pai para ir dar uma volta comigo nele:

- Conduzes bem! Acho que devias começar a pensar em  tirar a carta de condução!

domingo, 16 de março de 2025

8- A história incrível do casal contemplado com o euromilhões.

 - Mas nós não temos conta no banco!

Desta vez o homem alto e bem vestido não se riu, virou-se para a colega como que perguntando com é que vamos resolver este assunto. Sim, era evidente que nos próximos dias teriam de abrir contas, preferencialmente em vários bancos. Mas como poderia a Casa adiantar algum para eles pernoitarem em Lisboa e regressarem a casa?


A mulher baixa e bem vestida riu-se, virou-se para o colega como quem diz que encontrou a única maneira.

Saíram os dois por instantes e regressaram à sala para apresentar a única solução. Eles próprios, os dois funcionários, iriam ao multibanco e levantariam algum para lhes emprestar. Era só uma questão de se determinar a quantia e de assinarem um papel confirmando o empréstimo. Francisca e Jacinto não tiveram outro remédio se não concordar, prometendo que lhe duplicariam a quantia. Não seria necessário, responderam-lhes, mas além de lhes emprestarem algum líquido, iriam com eles a um hotel 5 estrelas, ali próximo, para ali pernoitarem e ali experimentarem os luxos da sua nova vida.


Os dois funcionários prometeram e pediram sigilo absoluto nestas combinações, não fossem os regulamentos internos arranjar-lhes alguma mancha na carreira. Não tinham dúvidas que estavam a agir por bem, embora não fosse muito normal, pobres desenrascarem ricos com dinheiro.


Riram-se os quatro do bom entendimento. Os felizes contemplados foram deixados no hotel, com o disfarce possível para os empregados não estranharem ou perceberem que se tratava de felizes contemplados com o primeiro prémio do euromilhões.


Sentiram incómodo por não haver maneira de esconder a sua origem e condição, provincianos pobres entre aspas, andaram pouco à vontade por circularem por espaços e tocarem objetos que lhes eram estranhos.

Na suíte foi diferente, ninguém os via. Testaram almofadas e colchões, espreitaram por janelas, miraram espelhos - para que é isto? como é que isto funciona? olha aqui isto! -tomaram banho, tentaram fazer amor, não conseguiram - mau! mau! – disse Jacinto - é muita emoção! – disse Francisca.


Desceram para Jantar. Nem aquela comida era para eles, nem aquela mesa e aquela toalha, nem aqueles pratos e aqueles talhares, nem aqueles jovens assim vestidos e com palavras a condizer. Se a fortuna por sorte os tomou, não seria de certeza para a esbanjar a frequentar locais daqueles e muito menos a comer coisas daquelas.

  

Subiram novamente, tentaram ligar a televisão não conseguiram, tentaram ligar o ar condicionado não conseguiram, tentaram novamente fazer amor não conseguiram, tentaram falar do dia de amanhã não conseguiram, tentaram dormir, só lá para as quatro da manhã.

 

Mas tinham conseguido responder à opção de tomar o pequeno-almoço no quarto. À hora combinada estavam à porta do hotel para se encontrarem com a mulher baixa e bem vestida. Esta havia-se disponiblizado para os acompanhar a uma agência bancária para abrir uma conta e nomear um gestor de confiança. Depois disso, dirigiram-se novamente à Santa Casa para tratar de mais umas burocracias e assinaturas e clarificar como se processariam as coisas nas próximas semanas.


Decorridas 24 horas tinham despachado o assunto que os tinha atormentado nos últimos dias e tinham arranjado dois amigos, um homem alto e bem vestido e uma mulher baixa e bem vestida, que estavam dispostos a ajudá-los no que fosse preciso, que os informariam por telefone do montante do empréstimo - somados os valores líquidos às contas feitas com o hotel - que se arranjaria forma de ser feita a transferência, que seria a dobrar! - repetiu Francisca para encerrar a conversa.


Como último favor, chamaram táxi para os ir buscar ao 194 da Avenida da Liberdade, com discretas despedidas para não levantar suspeitas.