Retomemos então ao ponto em que íamos fechando este parentises, aos dias seguintes, ao regresso de Lisboa e da Santa Casa.
Ele deixou de ir trabalhar, passaram a ser pouco vistos e quando vistos, sempre de afetos um com o outro, pediram a um ou outro um empréstimo da ordem das dezenas, garantindo por juras e juros a sua devolução e o povo foi entregando a sua pena e compreensão ao desgraçado acometido pela doença, certamente grave pois não trabalhava, e a ela coitada que poderia ficar viúva e sozinha, em idade avançada para haver quem lhe pegasse, se tal viesse a acontecer.
Dentro deles, crescia o segredo sufocante. Era difícil falarem com os outros e, entre eles, o tema repetia-se interrompendo os seus semblantes introspetivos, até que, ainda não tinham passado três semanas, receberam a visita duma psicóloga e dum técnico da Santa Casa - uma enfermeira e um médico na versão para consumo da vizinhança. Não havia outro remédio se não confiar em alguém, a senhora doutora iria acompanhá-los nas questões emocionais e o senhor doutor iria tratar do processo de distribuição inicial dos depósitos por várias instituições bancárias sem que eles tivessem de dar a cara. Mais tarde, desfeita a montanha em montes por questões de segurança ou discrição possível, poderiam então tomar nas suas mãos o seu património financeiro ou entregar a sua gestão a alguém que lhes merecesse crédito.
Depreende-se que no tempo decorrido, ainda a
fortuna não tinha acrescentado qualquer prazer extra ou laivo de felicidade às
suas vidas, pelo contrário, o esforço para conter tamanho segredo e o medo de
serem extorquidos, atazanava a sua pacatez. Tornavam-se assim longos os dias,
ainda mais longos por não se trabalhar para além de fazer a comida, comer e dar
comida aos animais e por se recear a vida social. Ainda por cima a simulação da
doença não permitia a Jacinto chegar ao balcão do Abílio e beber uns copos para
se distrair e a suposta continuação das dificuldades económicas, não dava para
Francisca ir espairecer comprando isto e aquilo na mercearia da Júlia ou fazer
como outras vizinhas que volta e meia gastavam uma tarde na Graça cabeleireira.
Mas pronto, esta visita do médico e da enfermeira, aqui para nós, técnicos da Santa Casa, seria para os ajudar a ultrapassar esta fase inicial em que não se sentiam minimamente preparados para lidar com a fartura financeira que deles se apoderou.
Depois de feita a aprendizagem de trabalhar com os bancos – uma ida ao banco era sempre justificada como uma consulta ou um exame médico - começaram a saldar as dívidas e a pagar tudo prontamente. Não ficou esquecida a generosa e secreta transferência para os “bem vestidos” da Santa Casa que os atenderam e desenrascaram em Lisboa.
Para este súbito desafogo económico
encontraram a justificação perfeita para enganar amigos e conhecidos: a filha
dera sinais de si e estava tão bem na vida que lhes mandava algum dinheiro para
os ajudar. Não era um argumento para fazer despesas na ordem do que os seus
depósitos bancários mereciam, mas pelo menos permitia calar o povo que exige
satisfações quando alguém próximo tira o corpo da miséria e começa a viver a
vida que toda a gente merece.
- Talvez… talvez possamos fazer pequenas
mudanças, devagarinho. Começamos por trocar algumas coisas da casa, mas nada de
luxos exagerados.
- Sim, e podíamos comprar uma televisão
melhor. A nossa já tem quase vinte anos…
A mulher sorriu.
- Sim, uma televisão ninguém estranha.
Assim começou o jogo da cautela.
Nos dias seguintes, foram fazendo pequenas aquisições: primeiro, uma televisão nova. Depois, uma mesa de madeira para a cozinha, já que a antiga estava torta há anos. Mas cada compra vinha sempre acompanhada de uma explicação bem pensada para os vizinhos.
- A televisão? Comprámos em segunda mão, uma pechincha! - diziam quando alguém perguntava.
- A mesa? Já andávamos a juntar dinheiro para
isto há tempos - acrescentavam.
Contrariamente ao que seria de esperar o casal
estava até a entender-se muito bem. Dir-se-ia que o pacto do “não dar nas
vistas” estava a funcionar lindamente. Estas pequenas despesas eram normais
para quem tinha descendência bem emigrada.
Toda a gente aceitava que era normal que, por
causa da doença saíssem algumas vezes, que por terem pouco para fazer fossem
muitas vezes passar a tarde à praia dos pobres, a nascente do Agroal, que
fossem outras tantas vezes a Fátima pedir velas de saúde à Santa e fossem a
feiras, mercados e festejos para passar o tempo.
- Quem diria que a galdéria da Lúcia iria
endireitar a vida a ponto de auxiliar os pais desta maneira?