sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Uma família normal

Vanessa conhece-me ainda suficientemente bem para chegar ao café, aproximar-se de passagem da mesa que ocupo em solidão, espetar-me duas beijocas e fazer daquelas perguntas triviais do “então tudo bem?”, “onde é que estás?”, “que fazes?”, “casaste?” e mais duas ou três destas, intercaladas de respostas curtas e rematadas na minha simpatia anti-social com um “e tu?”
- Eu? Sou sempre a mesma! Vou sentar-me aqui ao lado com estas primas!...
Há muitos anos que não a revia. Tenho uma vaga ideia de na meninice chegarmos a brincar aos doutores e dela se ter adiantado na emancipação, por ser mulher, e lhe perder a proximidade. Saiu da terra, deve ter arrendado quarto na vila, falou-se dela, que andaria na passa, que dera em puta para sustentar o vício, uma desgraçada, enfim, comentários que a aldeia não perdoa a quem a rejeitar. Eu, sempre do contra, lembro-me de um dia lhe fazer defesa:
- Fosse eu mulher e teria o mesmo ofício, vendido ando eu a trabalhar no duro!
Vanessa, pela ausência, esqueceu e só me voltei a lembrar dela quando o António Variações saiu da tumba, na voz de outros cantores, a falar da filha de uma tal Maria Albertina. Coincidência, o único dia de agosto que dediquei à terra, Vanessa estar ali para rever as primas, na mesa ao lado, a debitar vivências com o seu conservado estilo, enquanto eu disfarçava o ouvido, com as folhas do Correio da Manhã da casa e um tinto já com pique, também da casa!
Contava ela – eram duas as atentas – as suas férias todas cinco estrelas, desde o hotel à praia, passando pelo tempo, a comida e a diversão. Vanessa contava de tal modo entusiasmada que deixava transparecer a ideia que o ponto alto do seu gozo não eram as vivências mas sim a oportunidade de as contar. E mais ali, em que as primas, a julgar pela pele, nunca deviam ter passado além da Nazaré, o efeito do seu relato era de ginjas.
Ficara muito barato, os quatro com comida e meia pensão – ela devia querer dizer dormida e não comida – com todos os spas, lençóis novos todos os dias e garçons falando português – percebi que o paraíso fora algures entre Quarteira e Vilamoura – ficara em não sei quantos euros.
O António só estava bem na rua, o Fernando a comer, o João a nadar.
O João gosta de marisco, o Fernando de estranhos, o António do mar.
O Fernando dormia à tardinha, o João à noite, o António de dia.
O João é de discoteca, o Fernando é de livros e o António é de bar.
O Fernando adorou, o António adorou, o João adorou.
- Tu adoras os três!...
Disse uma das primas. A conversa andou por aqui à volta e eu a pensar nas voltas da vida, com a Vanessa casada, dois filhos e férias de sonho…
- Prazer em ver-te João!
As três de saída e eu feliz com a Vanessa, a revivê-la na bacidez do tempo.
- Quanto é que devo Ti Etelvina?
- Está tudo pago!
- Quem?
- Foi essa cabra que acaba de sair! Vê lá o que fazes João, tu tens família!
- O quê?
- Então essa!!!... não regressou aqui ao fim de tantos anos com três homens?!…
- E então?! Fez família!…
- Quais família quais quê João! Ô da-se! Estou a dizer-te que vive com três homens ao mesmo tempo!
- Ôooo da-se! …
A Vanessa contou umas férias normais. Se for necessário continuarei a defender a Vanessa.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

À mesa do pensamento único

O jovem moderador formulou a sua opinião e perguntou ao jornalista velho se achava se era assim ou não. 

O jornalista velho concordou que era assim e acrescentou o suficiente para satisfazer o jovem moderador que passou a palavra à especialista de meia idade.

A especialista de meia idade disse concordar com tudo o que tinha ouvido e  acrescentou mais uma coisa que o jovem moderador aceitou e o levou a pedir o comentário do ex-ministro em exercicío.

O ex-ministro em exercício afirmou estar inteiramente de acordo com tudo o que foi dito e recordou as imagens que comprovavam isso, até que o jovem moderador disse:

- Vamos dar mais uma volta mas peço-vos que não entrem em debate nem acrescentem mais coisas porque o nosso tempo está a acabar.

O jornalista velho, a especialista de meia idade e o ex-ministro em exercício discordaram do jovem moderador e argumentaram com garras e dentes que o seu tempo não estava a acabar.

Para terminar, o jovem moderador, jornalista, especialista e futuro ministro,  explicou que tinha havido um equívoco com o "tempo" e disse: este é o nosso tempo, o tempo da informação, reparem que as armas duns só  acertam em soldados e não matam civis e as armas dos outros só matam civis e não acertam em soldados!

O espetador comum comeu que nem um parvo esta nova maravilha da tecnologia militar e amanhã vai assistir a um debate idêntico onde se discutirá aquela guerra onde uns são terroristas porque assim são chamados e os outros não são terroristas porque lhes chamam soldados.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Elogio póstumo

 Companheiro de águas passadas, perdemos a meada ao caminho da poesia. A poesia é o caminho dos condutores de palavras. Os júris falam da engenharia e da arquitetura das palavras, as palavras devem ser complicadas, de modo a serem só compreendidas por pessoas inteligentes e complicadas. Mas para nós, simples, os poemas teriam de ser como borboletas, teriam de nascer e morrer no mesmo dia e, assim, irrompiam de ti versos espontâneos a um ritmo que a escrita não podia acompanhar. Vinham aos jorros entre a espuma de cerveja nos teus lábios, muito menos pensados do que os das pessoas simples da terra que cantavam à desgarrada, enleavam-se no fumo dos charros e cigarros. Se fossem escritos perdiam o sentimento. Os versos eram donos e coisa do momento e, quando começavas a debitar o que sentias, o grupo inteiro se envolvia e até os poetofóbicos metiam no meio um verso ou uma palavra, de modo que de poesia de todos se tratava. Um verso era uma onda efémera que se formava da ventania dos nossos pensamentos e que desaparecia no areal do céu das nossas noites longas. Mais uma cerveja. Talvez mais um poema coletivo até que o homem de serviço dissesse que ali no café não se falava de política. Quando nós até dizíamos que faltava política à poesia e poesia à política. Depois, para que se adiasse o regresso às casas frias e pobres onde dormíamos, alongávamos o caminho pelo arrabalde e lá te vinha outra vez um ataque de poesia onde, na pausa certa, até o zé, que não sabia uma letra, metia uma farpa de poeta. E se acontecia a perturbação dos faróis dum carro na nossa direção, de certo conduzido por um velho, que não perceberia ponta dum chavelho das conspirações da juventude, muito menos de poesia, algum de nós haveria de ordenar:

- Apliquemos o velho truque, fingimos que estamos a mijar!...
Até que um dia, Egídio, farto da política sem poesia, decidiste passar-te. De anarquista passaste a usar fato e gravata, de republicano passaste-te a monarca e, como se não bastasse, o rei eras tu. Nova monarquia. O partido será fundado sobre o cadáver do rei. O motociclo de el-rei, chamavas tu à tua Casal 2.

Já nada sei de ti há muitos anos. Mas nestes tempos que nos vencem todos os dias, vem-me muitas vezes a força da tua esperança:
“Sei que perdi os mares e o império e a satisfação do momento
mas é preciso não esquecer o chilrear das aves que se amam ao nascer do sol”.



sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Depois do fogo apagado



O incêndio nascera por ali, ameaçara currais, casas e quintais mas já partira por montes e vales a caminho de outras aldeias e lugares. A meio da ladeira a vizinhança, que o enfrentou, palavreava, ainda com os olhos nos focos que resistiam em cepos, barrotes e restolhos, ainda entre o fumo e o cheiro que pairava. Ofegava ainda do duro combate que travara, aliviada pela vitória da salvação das casas e não se acanhava a identificar, culpas, causas, sentenças e soluções.

O octogenário ia ouvindo e pensando:
- A culpa é do aquecimento global! - sei lá o que é isso!
- A culpa é  dos eucaliptos! - nunca plantei um sequer!
- A culpa é de quem não corta o mato! - já não tenho forças para isso!
- A culpa é dos bombeiros! - coitadinho do meu neto que anda lá sem ganhar nada!
- A culpa é do governo! - votei sempre neles e neles votarei até à morte!
...
- A pena de morte tem de existir para os incendiários!

A octogenária apareceu e disse para o homem e para quem a quis ouvir:
- Mas que raio foste tu fazer para o palheiro com o cigarro na boca e a Penthouse na mão?

O octogenário desembaraçou-se da língua comprida da mulher e disse para quem o quis ouvir:
- Uma parte deste país é um imenso palheiro, a outra parte é uma imensa casa de putas de ambos os sexos.

E dito isto, toda a gente pôde concluir que a culpa tinha sido da mulher do octogenário.

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Explosão de varões

Os quartos da bateria de instrução tinham dez camas. Calhou-me por sorte de especialidade o último quarto onde sobravam sete camas vazias. Os outros dois recrutas não tinham formação superior e eram uns anos mais novos pelo que quem mandava no quarto oito era eu. De todos os restantes quartos vinham os rapazes de mais excessos, fumar, beber e comer de tudo e mais alguma coisa.

Um dia o meu amigo Cavalheiro, também companheiro de excessos de Coimbra, convidou-me para ir ver como era o quarto dele às dez da noite: um escrevia à namorada, outro lia a Gina, outro regressava da retrete, outro tinha a cabeça enfiada debaixo das mantas, outro engraxava as botas, outro comia bolachas, um estava apático e dois discutiam futebol.  A nossa entrada rompeu o ambiente e impôs-se pelo canto:

“Acorde sr prior! Acorde sr prior!

Acorde não durma tanto!

Nós já vimos da igreja! Nós já vimos da igreja!

Vamos para os Esprito Santo!”

Quando, à medida que entrámos na cantiga, começámos a bater com as mãos o ritmo nos armários, não esperávamos uma reação tão rápida dos camaradas. No espaço de alguns segundos, todos batiam o ritmo no que tinham à mão e cantavam com voz de soldados a inocente canção. Atrás da barulheira vieram de outros quartos, outros fazer coro e alinhar no forrobodó.

Todos já experimentámos momentos destes na vida em que inesperadamente se verifica uma explosão coletiva de franca alegria, aparentemente sem razão maior. São oportunidades raras em que uns se tornam atores e outros deixam de sê-lo, em que toda a gente exterioriza, participa, sem inibições, com satisfação plena e plena consciência que está a viver um momento único e inesquecível.

Estas manifestações não são completamente espontâneas, há sempre um ou mais provocadores que as fazem acontecer, seja num encontro, numa festa ou mesmo numa revolução.

É um momento destes que este pequeno filme documenta. E se há filme, não há necessidade de escrever, não precisareis de muitas palavras minhas para o interpretar, para o viver e para rir. 


(Vivi esta explosão no jantar do dia 1 de janeiro de 1992. A noite da Passagem de Ano tinha sido dura, não havia outra maneira de continuar a noite seguinte. Evitam de me procurar entre os convivas porque sou eu que estou a filmar)

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Tudo está consumado

Não voltaremos às praias quentes do sul nem voltaremos a dançar valsas no salão da associação.
Nunca mais chegaremos a casa de madrugada procurando em todas as gavetas um cigarro vivo.
Não voltaremos a descer a avenida grande, ditando palavras de ordem, nem nos colocaremos mais à frente do piquete de greve.
Os nossos corpos não tinham o direito de nos trair mas não traímos os nossos filhos como os nossos irmãos traíram os nossos pais. Olha ó que nós chegámos Emanuela, se falarmos de paz à mesa de Natal, sentiremos o poder de fogo daqueles que cresceram na mesma lareira do que nós! Por incrível que pareça esta é a maior tragédia das nossas vidas, maior que o ar de dor dos hospitais, maior que a cruel consciência de que o fim está atrás daquela nuvem em que nos fazemos transportar em cada dia. Afinal nunca fomos deles, nem eles dos nossos.
Valha-nos o termos lido o suficiente para aprender a tirar prazer da claridade, do silêncio das noites que não dormimos, dos nossos filhos que ainda nos pedem embalo ao berço. Mas o maior prazer que aprendemos juntos, foi a gostar dos dias chuvosos: 
- Que bom! Hoje não está nada bom para sair de casa!...
Há uma parte em que sempre encontrámos o equilíbrio, nunca foste tão desbocada como eu:
- Eu quero que eles se fodam! 
E se os vires a chorar quando eu morrer, a tecer elogios de crocodilo, manda foder a educação, manda-os foder!

sexta-feira, 5 de julho de 2024

À morte ninguém escapa


Tanto a minha mãe como o meu pai morreram prematuramente e, obviamente, eu fiquei orfão, também prematuramente! Portanto, de morte, já tenho o meu quinhão, embora tenha de reconhecer que, verdadeiramente, conhecedor do assunto só o serei tardiamente na minha hora, que acontecerá, espero, a partir deste preciso momento, num tempo que não me permitirá falar da minha experiência pessoal.

Na última semana morreram várias pessoas em Lisboa, no Alentejo, em Trás os Montes e, em Trás dos Matos, que é uma aldeia da freguesia de Vila Cã, ouvi dizer que também lá morreu um homem. Peso de modo igual a morte dessas pessoas mas mais a pesaria se alguma delas me fosse próxima. Não podem é acusar-me de frieza por não ir no embalo mediático das mortes da semana, de aqui-d ’el-rei  tens de chorar votos de pesar por nomes sonantes da arte ou da política, do desporto ou da fortuna, que me dizem tanto, enquanto mortos, como o senhor de nome provável José, natural de Trás dos Matos, que eu nunca conheci e de quem nunca ouvi falar. 

Na morte somos todos iguais, não é o que dizem? Pois saibam que não verto uma molécula de lágrima por alguém que nunca me tenha dirigido a palavra ou a simpatia, embora compreenda que alguns, em quem o poder da morte não é tão cérceo, sejam reconhecidos anonimamente pela sua arte, pela sua luta, pela sua destreza ou pela sua riqueza. Se o senhor José fazia esculturas de paus de louro, pertenceu à junta de Vila Cã, jogava bem à malha e deixou uma quantidade considerável de certificados de aforro, não vai ser por isso que eu o choro mais ou menos. Por isso, famosos, podereis ir morrendo que não perturbareis o meu santo sono diário e muito menos o eterno.

 Abaixo os funerais de estado e o panteão!

 Recordo uma cantilena que ouvi dos meus pais e que já passei aos meus filhos: 

À morte ninguém escapa, nem o rei, nem o cura, nem o papa. Mas hei de escapar eu! Tenho aqui um vintém, compro uma panela, meto-me dentro dela, tapo-me muito bem! Vem a morte não me vê. Bons dias meus senhores passem todos muito bem!

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Tomei partido por uma caixa de sapatos

Ela deve ter-se embeiçado por mim porque me ouviu cantar “Michelle, ma belle”, acompanhado à viola, no jardim municipal. E se eu cantava bem! Eu estava com uns colegas de propedêutico, num daqueles bancos de tábuas ripadas, a ensaiar os primeiros acordes dum sonho de vida musical e ela estava com umas amigas, num banco próximo, a exibirem brincadeiras e a atirar olhares para os nossos lados. Não as conhecíamos do liceu - rapariguinhas de pais do operariado que se estavam nas tintas para os estudos e queriam era namorar.

De partida os dois grupos cruzam-se e sinto um encontro de ombros dela, provavelmente provocado pelo empurrão dissimulado duma companheira, simuladamente inadvertido, e divergimos para lados opostos, com risos divertidos de juventude em idade de contacto.

No dia seguinte, repetida a canção, ela vem ter comigo pedindo-me desculpa pelo encontrão da véspera e pediu-me um cigarro, depois um beijo, depois mais beijos e assim fomos nascendo.
Navegando a novidade, uma tarde, sugeriu-me um centro de convívio do seu bairro. Não estava ninguém, entrava-se sem ser preciso chave. Uns sofás, uma mesa baixinha de sala de estar e umas damas. 
- Sabes jogar?

E eu, num "sim" de novato ali e acanhado, rendi-me à solução preliminar e colaborei com destreza no posicionamento das pedras no tabuleiro. 
Beber? Claro, beber faz parte do jogo! Tirar a carica. Pagar? 
- Vê aí os preços nesta folha e faz os trocos com o dinheiro que está nesta caixa de sapatos.
Que associação é esta!? Quem pode confiar assim? Até as caixas de esmola da igreja têm cadeado! Pensei.

Estendeu-me a garrafa e eu levei-a à boca e desajeitado com o momento, babei-me com a cerveja até ao umbigo, tombei o tabuleiro e só dei por mim quando a espuma já untava os corpos próximos, estendidos num leito de eu sei lá. A coisa dava-se e, quando num bater mais acelerado do coração, parei os olhos, vi uma foice e um martelo sobre um fundo vermelho.
-  Qual centro convívio qual carapuça, isto é um centro de trabalho!

Julgo que foi este aparte ou o tom com que me saiu que fez com que o estado de enamoramento não tivesse durado muito mais tempo. Passado um tempo e mais uns beijos e humidades, ela mudou de terra ou de partido, eu mudei de terra mas nunca perdi o encantamento pela gestão daquela caixa de sapatos.
E foi assim, que do borbulhar duma  efémera paixão, parti para a vida de quem toma partido para a vida toda.



quinta-feira, 20 de junho de 2024

O doutor Zé António

 O doutor é um poeta da palavra - das palavras!... O doutor dá melodia às palavras e os seus versos sabem a música. O doutor sabe muito. O leitor também tem de saber alguma coisa para entender a palavra - as palavras!... perceber e sentir a melodia e consumir os versos do doutor. 

Quem não sabe nada nem entende - quanto mais sentir! - as palavras "enversadas" do escritor - perdão! doutor - é o Zé António. O Zé António lê nas flores o canto da próxima colheita, conhece cada ave pela melodia do assobio, sacia-se com a sonoridade da água que sussurra numa queda do regato, fala com a ovelha mãe e desabafa sentimentos com o vizinho meio  doutor. 

E o vizinho, que tem livros em casa, desiste de ler e bebe um copo com o Zé António para ver se aprende a olhar para as flores, a conhecer os pássaros pelo que cantam, a avaliar a água que acrescentaram ao vinho e a conhecer cada ovelha pelo seu olhar.

E no fim do copo, tão pequeno como a conversa, o Zé António a rematar:

- Pá! Não penses mais nisso! Tás cum olhar que parece o do meu carneiro mor! Isso há de passar! A mim disse-me que eu vou morrer mas não sabe quando! O doutor sabe pouco!




sexta-feira, 14 de junho de 2024

Terra-mãe

Ontem visitei a minha mãe. Já não é a mesma que conheci quando eu crescia. O alpendre da avó foi com um vento, a eira do tio foi com uma enxurrada, da casa do bisavô não resta nada. E foi morrendo cada geração e ela ficou ali rapando o sol e mastigando o frio. Podia ser pior. Passa um trator com corta-mato e o tratorista acena a tudo o que mexe. A Sagrada Família ainda vai de casa em casa. Podia ser pior!... O doutor de letras restaurou a casa que herdou do pai. Isto vai! Digo que sim, respeitando quem o diz mas a minha mãe não tem a mesma alegria. Os filhos tiveram mais partidas que regressos. Vêm ver uns marcos e dar algum dinheiro para o andor. Deus Nosso Senhor lá sabe. A minha mãe tem a flor da pele marcada pela ausência das sombras das árvores que os incêndios levaram. A minha mãe tem os cabelos despenteados pelo fim dos arados que os tempos levaram. Já só a visito por ser mãe e folgo em saber que ela está para durar nem que seja só para enterrar os que vão morrendo. Outros destinos traíram-lhe o destino.

É claro que falo da minha terra-mãe que a do ventre já se foi e não viu isto. 

Dizia eu, em tempos, que quem perde as suas raízes, seca. Pois então falei a uma retro e a um camião e trouxe uma carrada de terra lá da terra e fiz um canteiro no meu quintal. Agora estou melhor! Tudo o resto são saudades e remorsos.
Eu devia ter sido pastor ou lavrador como os avós.
Mas não! Fui no engodo de que estudar é que era! Com a certeza de merda que qualquer cidade me daria mais. E olha agora, a minha terra-mãe a morrer e eu longe dela!

Toda a província padece deste mal. É bem feito em quem parte e em quem fica dizendo:
- O meu está muito bem, vive em Aveiro!
- O meu lá está para França e lá fez vida! 
- O meu neto está um homem, foi pró Dubai!
- A minha filha está tão contente desde que o filho arranjou emprego na Inglaterra!

Nas aldeias ninguém cria os filhos com projetos para que eles venham a viver nelas. Uma terra com os campos ao abandono não tem futuro. Um país que abandona as suas aldeias não tem futuro. Um Estado que fecha tudo o que é serviço público nas aldeias, não é um Estado é um bananal! Os pobres que ficaram nas aldeias a carpir por Salazar são bananas! ...Eu não sou nêspera!




terça-feira, 4 de junho de 2024

O meu companheiro da quarta classe

 


Ao longo da vida tenho reunido muitos diplomas mas só este teve direito a caixilho. Na quarta classe eu era o melhor na escola e o pior na bola e o Cuca era o melhor na bola e o pior na escola. Éramos só os dois.

Para fazer o exame, fomos os dois sozinhos, a pé, até Albergaria e apanhámos a camioneta para Pombal. Toda a gente dizia que eu ia dar um lindo padre (ia) e  fui todo o caminho a rezar ave-marias para o Cuca passar e eu não vomitar. Não me recordo mas a professora, que era da vila, devia estar à nossa espera e deve-nos ter acompanhado à escola grande onde prestámos provas. O facto de, da nossa escola, termos passado cem por cento, obrigava a professora a cumprir a promessa de nos levar ao castelo que só conhecíamos de ver ao longe. 

Para nós, poder tocar nas pedras dum castelo seria uma forma de realizarmos parte das fantasias que as imagens dos livros de História nos ofereciam.

Acontece que a professora, por estar nervosa com o período dos exames ou por outro período qualquer, disse-nos chorosa que estava com tamanha dor de barriga ou de cabeça, ou das duas coisas, que não conseguiria fazer tal passeio mas que ia pedir à mãe dela que fizesse as suas vezes.

E lá fomos os três, nós ligeiros de idade e felicidade, e a senhora a passo de bengala, ofegante mas segura no cumprimento da missão. Quem conhece sabe que o monte, subido a butes não é para qualquer idade ou condição e a pobre mulher  viu-se obrigada a desistir já se avistavam as portas:

- Os meninos vão lá que eu os amparo daqui com os olhos mas não entram que eu não os quero perder de vista!

E assim foi, chegámos à porta e meia volta. E assim continuou a minha amizade com o Cuca, volta e meia encontrávamo-nos, até que recebi a triste notícia que cinquenta por cento dos que fizeram comigo a quarta classe...

Desculpa lá, companheiro de classe, acabar a homenagem assim mas de ti irei guardar memórias de brincadeira da escola e de que eras um tipo lixado para a bola.

sexta-feira, 31 de maio de 2024

 

A coisa começou a correr bem ao homem depois de 74: mais esperança, mais liberdade, menos medo, menos fiscalização, animaram a sua atividade de caixeiro viajante e os seus negócios começaram a prosperar.  

Sabia-se que, para tal sucesso, era necessário untar as mãos a guardas fiscais, republicanos e outros mais. Sabia-se que não trabalhava com letras, nem com cheques, nem com bancos. A massa viva  guardá-la-ia onde só Deus sabia mas, quando os maços começaram a ficar grossos, temendo um diabo que os levasse, começou a dar-lhes caminho fazendo anexos, muros e escadas, latadas, portões e arruamentos, valorizando assim o seu quintal, dando trabalho a alguns e vida à terra.

Pensava numa de noite e de manhã ia falar ao pedreiro e a uns jovens estudantes que gostavam de ganhar algum e... mãos à obra. A mim, talvez por me achar um trinca-espinhas, por me ter por contestatário ou por não engraçar comigo, nunca me falou para fazer nada. 

Sem nada para fazer, peguei na motorizada para dar uma volta e parei para apreciar os trabalhos e dar um ponto de conversa aos meus amigos. O muro estava praticamente acabado e, como alguns dos serventes já andassem de mãos penduradas e houvesse sobras de blocos, deu-lhes o homem o trabalho de fazerem mais duas fiadas sem cimento - pelo menos ficavam arrumados.

 - Ó homem, com a massa fresca e esse peso em cima não tarda muito isso desaba tudo!

- Rapaz, eu não te falei porque já sabia que és uma caga-agoiros, some-te daqui antes que leves uma pazada! 

Não tardou nada, o muro tombou e eu vi-me obrigado a rir. Antes que o homem descarregasse em mim a sua ira, sorte a minha, pára o jipe da GNR e foi com eles que ele desabafou do seu azar, enquanto a malta olhava para o bonito serviço e eu me dirigia para junto da minha motorizada. 

Entretanto aproximou-se de mim um guarda e perguntou-me pelos documentos e pelo capacete.

- Mas a mota está parada, o senhor não sabe nem se é minha nem se eu me desloco nela!

- Sou testemunha que a mota é dele e que ele aqui chegou nela sem capacete!  

Para acelerar a alhada que se estava a desenrolar, o filho do homem, que havia ido ao café buscar umas cervejas para o pessoal, chega a acelerar na sua Zundap e, para animar a história, também não trazia capacete. 

Bem podia eu animar ainda mais a história,  prolongar o texto com discussões fictícias mas a verdade é que, traído pela memória, pela imaginação, pelo jeito ou pela vontade, por mais voltas que dê pela tecleta (palavra criada agora mesmo da composição de teclado com caneta), não consigo desembaraçar-me da incoerência e chegar com pés e cabeça à frase final que tinha pensado:

- Não há gatos polícias.

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Não gosto da vossa europa

- Eu queria uma Europa que não se armasse, que não desviasse a água do meu milho e que não me obrigasse, depois, a fazer guarda à eira.

Parece que ouço a minha mãe a dizer isto antes disto acontecer, antes de desaparecer, descalça, pelo milheiral adentro para, com os calcanhares e a sachola, encaminhar a água à raiz de cada pé de espiga, quando eu ficava ali, seguindo as voltas da burra emprestada p´lo mê ti Sicrano, vendada e amarrada à nora, repetindo voltas sempre iguais, cumprindo com os seus círculos o sucesso da próxima colheita. E eu andava por ali, também às voltas, seguindo solidário as suas voltas, caçando borboletas, contando os alcatruzes a cada despejo, seguindo os caminhos da água até esta desaparecer pela sombra fechada do milho que escondia a minha mãe. Impossível repetirem-se esses cheiros, essas águas, esse verde; nem a vida me permitirá chegar aos calcanhares do mê ti Sicrano - dificilmente conseguirei um dia ter uma burra!
Mas sou bem herdado na parte que toca a ter passado. Usufruí dessa riqueza de partilhar com a burra o verde do milho, o som da água, a sombra da latada que completava o poço e toda a engenharia da secular nora.
Banho-me nesta infância, olho os senhores da europa e concluo: não sabem nada, andam todos à nora!

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Que os coletes verdes os salvem

 


Hoje em dia, o colete verde está para os peregrinos de Fátima como o colete encarnado está para os campinos.

Ir a Fátima a pé é uma nova forma de religiosidade que, na Fé do crente, redime o absentismo pelas práticas tradicionais do ir à missa ao Domingo e à confissão, por outras palavras, de andar à volta das saias do padre.

Fátima, à volta da Imagem da Senhora, tem-se “vaticanizado” e transformado numa sucursal da Praça de S.Pedro onde os leigos, cada vez mais pecadores, se ajoelham aos gestos do secular clero. Mas os padres de Fátima nunca foram bons anfitriões do peregrino pedestre e a hotelaria local nunca lhe suportou o chulé, embora, ambas as partes, os tolerem porque os reconheçam como um dos dentes da chave do negócio.

Vêm estes parágrafos, aparentemente inconsequentes, à razão, pelas razões que me atravessam a revolta quando vejo tanta gente caminhar perigosamente pelas estradas, respeitosamente por Fé, incompreensivelmente sem a devida atenção ou consideração pela parte das autoridades religiosas ou civis. Todo o apoio que encontram pelo caminho, nasce da iniciativa de organizações ou movimentos que nada têm a ver com os cofres ou com os lucros com que o negócio-milagre tão bem se alimenta.

Reconhece-se que o peregrino de Fátima, português, caminha, antes de mais nada, por penitência, que dispensa o conforto e tem Fé que do perigo a Sua Senhora o livrará. Mas não seria a altura, agora que a indumentária refletora esconde o Portugal pobre do século XX, dos chefes da Igreja e da governança terem uma pequena consideração por esta gente?!

Sensibilização seguida de encaminhamento para caminhos e trilhos que os desviassem do asfalto sem bermas, mapeamento de parques e albergues que lhes permitissem dignas paragens e, se mais não fosse, apenas isto: um parque de campismo e balneários na pequena cidade-fenómeno. Mas não, a Igreja reverteu todas as esmolas para a maior obra de culto que se fez em Portugal desde o Convento de Mafra: a nova Basílica. Não foi feita para o “pé de ténis chineses” de quem chega a pé, foi feita para os japoneses, brasileiros e portugueses que vêm com os pés limpos das alcatifas dos modernos meios de transporte e que melhor servem os  interesses do turismo religioso.

Nestes dias, entre os automóveis viram-se muitas tendas e coberturas de plástico. Ao menos um parque de campismo em Fátima! Nunca ninguém se lembrou!? É de bradar ao Céu!...

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Mães

Onde as mães se metem a História realiza-se.
As mães da Praça de Maio.
As mães de Kiev.
As mães do Terceiro Reich.
As mães de Gaza.
As mães de Bragança.
As mães de Abril.

Quando as mães nos chamam é para dar.
As mães, dão livros, filmes e à luz.
As mães dão orfãos, soldados e poetas.
As mães dão tudo de todo o coração.
As mães são assim.
As mães são menos que os filhos.
As mães são muitas.

Mãe há só uma e todos tiveram mãe.
As mães dos filhos da puta.
As mães dos meus amigos.
As mães das vítimas.
As mães dos recém nascidos.
As mães das mães.
As mães que morrem.

Numa noite de natal fiz uma mãe.
A mãe de Gorki.
A mãe pátria.
A mãe de todas as bombas.
A Mãe de Deus.
A mãe dele.
A minha mãe.

- Mãe! Oh Mãe!...