sexta-feira, 15 de novembro de 2024

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Trump chegará a Portugal, como o Desejado, numa manhã de nevoeiro

Cenário: 

Uma festa familiar de classe média. Três casais, seis filhos, dois avós e uma avó. Três gerações.

Duas crianças, em idade escolar, divertem-se com um videojogo de guerra onde "vestem a farda" Delta Force num cenário nova-iorquino. 

Dois adolescentes em idade de liceu, um vê no tablet uma série policial passada em Los Angels e o outro delicia-se com um reality show da TV Las Vegas.

Dois jovens universitários entretêm-se mostrando um ao outro os telemóveis, com umas novas aplicações made in USA e que, estão convencidos, irão revolucionar a revolução digital.

Porque se trata de novas gerações, os seis filhos não se separam por sexo, o mesmo não se dirá dos adultos.

As mulheres estão na cozinha, a ver na TV um talk show americano que, segundo uma, chegará rapidamente a Portugal. Excepto a avó que anda de volta dos netos a perguntar se querem coca cola e se gostaram do almoço - se não gostaram da próxima vez leva-os ao Mac Donald´s.

Os homens estão a partilhar um whiskey Jim Beam pós refeição, na varanda. Excepto o avô que está sem poiso certo vagueando pela casa, parando junto das crianças a procurar atenção e tentando convencê-los a jogar pião, junto dos adolescentes para procurar carinho e desafiando-os para um dominó, junto dos universitários para os tentar entender e recomendando-lhes um livro de João Rato. Passa pela cozinha e mostra falsa curiosidade pelo que vêem. Vai à varanda e pergunta se não querem antes um tinto alentejano e manifesta claro desprezo pela conversa.

Um dos homens é oficial de infantaria e fala da sua aventura no Afeganistão dando razões à intervenção americana e à NATO e elogios às armas e ao treino que eles têm. Ninguém o contradiz. O outro homem, que é bancário, mudando a conversa, explica a crise financeira e a inevitabilidade de adoptarmos o modelo capitalista americano. Ninguém o contradiz. Muda-se o disco e o mais novo, que é pequeno empresário, dá vivas às leis laborais da América e assegura que ficaremos na cepa torta enquanto não se acabar com os sindicatos. Ninguém o contradiz. Fechada a conversa, dirigem-se à sala e perguntam aos filhos se não querem antes ver um filme de índios e cowboys como nos bons velhos tempos. 

Todos dão pela falta do avô, procuram-no, encontram-no. Está na casa de banho a limpar o rabo a um boné que tem a bandeira americana estampada e as iniciais USA. Pergunta-se, de quem é o boné? Pode ser de todos, dele é que não é!
A avó invoca o Nome de Deus em vão tal como os americanos fazem continuamente.

Poder-se-ia dizer, o velho enlouqueceu de vez. Provou-se que não quando ele disse para a família que se juntou atrás da avó, à porta da retrete:
- Ainda terei lucidez quando um dias destes assistir à eleição, com o vosso voto, dum Trump à portuguesa! Infelizmente ainda lúcido e felizmente mais que vós. 


sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Este dia não é de todos os santos mas de todos nós

1- Quando eu era pequenino o dia 1 de novembro era o dia do Bolinho. Nós,  os petizes,  íamos em bandos pedir, de porta  em porta, o Bolinho que podia não ser bolo mas nozes, tremoços, castanhas peladas, cinco tostões, rebuçados franceses,  "não tenho aqui nada" ou "sumam-se daqui para fora cachopos pedinchões!". 
No fundo tratava-se duma iniciação áquilo que os portugueses tanto gostam de fazer: pedidos e peditórios, recolhas de bens e angariações de fundos. 

O facto de sermos muitos ou poucos, filhos de fulano ou sicrano, mais ranhosos ou mais engraçados, tinha bastante influência na qualidade e quantidade das iguarias recolhidas. 
Um dia, já grandito, a esperta da minha mãe aconselhou-me a ir sozinho e recomendou-me as palavras e modos como devia chamar pelas tias e pedir o Bolinho - tive de ir três vezes a casa despejar a saca e juntei uma nota de Santo António de tostões, tal foi o sucesso.

2- Quando ganhei buço, o dia 1 de novembro passou a ser o Dia de Todos os Santos. Durante os loucos anos 70 e 80, o dia era de festa, de baile ou de andar de pipo em pipo para eleger a melhor água-pé da aldeia. Lembro-me num dia em que, pelas quatro da tarde, começámos quatro, e pela meia noite éramos  quarenta,  visitando todas as adegas, deixando em todas as casas do lugar um rasto de melodias e alegrias que avivaram as lareiras adormecidas das gerações mais antigas.

3- Agora que sou grisalho, queriam que eu começasse a viver o dia como o dia de ir ao cemitério mas está quieto: a minha gratidão não é de pétalas, a minha memória não é de mármore e a minha fé não é de cera. 

Enquanto dia especial do calendário, a especialidade do dia tem origem em celebrações pagãs aproveitadas pelo culto católico. Se a ligação aos santos não fosse leviana, a  bispalhada não teria prontamente oferecido ao governo "passosportas", em 2012, a sua extinção como feriado. Não fossem, posteriormente, os comunistas a exigir aos socialistas a reposição dos feriados extintos e ainda hoje estaríamos a trabalhar um dia à borla em nome não sei de que santos. 
...
Focado nestes três tempos, vivente destas três idades, eis-me hoje em casa, sem crianças a bater-me à porta, sem amigos ou adega para virar uns copos e descascar uns tremoços, mas gozando um feriado de raízes ancestrais, dos celtas ou dos romanos, das bruxas ou dos padres, dos vivos ou dos mortos, mas de direito. Porque, se eu fosse trabalhar, trabalharia mais um dia do que no ano anterior e, assim sendo, a entidade patronal teria usufruído de mais um dia de trabalho meu do que no ano anterior, sem me pagar mais nada.

Viva o 1º de novembro! O feriado que é de todos os santos e, como santos não vemos, não é de ninguém.

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Por ocasião da morte dum cidadão

(sem imagem)
Nos últimos dias a comunicação social popular tem encontrado assunto de entretém nos acontecimentos que tiveram origem na morte dum cidadão por um tiro disparado por um polícia. 
Não é com elementos fornecidos por essa comunicação social que vou opinar sobre as circunstâncias em que essa morte aconteceu e, muito menos, fazer julgamento popular de quem foi  morto ou de quem matou.
Mas há coisas novas que não costumavam acontecer em casos destes, o líder dum partido com cinquenta deputados disse:
- Nós devíamos agradecer a este polícia o trabalho que fez. Nós devíamos condecorá-lo... 
O líder do grupo parlamentar desse partido disse:
- Se calhar, se os polícias disparassem mais a matar, o país estava mais na ordem.

Um assessor dum deles, de ambos ou de quem lhes lava os tomates, escreveu:
- Menos um criminoso... menos um eleitor do Bloco.

É por causa destas e por outras que, hoje mesmo, recusei participar numa almoçarada. Sabia que iria lá estar um "chega assumido" e disse para quem me convidou:
- Não vou porque não me sento à mesa com gente dessa!
- Pois, mas como deves perceber, eu não  vou deixar de convidar ninguém por questões políticas!

Claro que aceitei como legítimo o argumento e nem me dei ao exercício de explicar que não eram questões políticas mas civilizacionais. Mas fiquei a pensar em todos aqueles que são do Chega ou,  pelo menos, cúmplices das suas alarvidades e barbaridades, sem terem consciência de que o são. Podem até nem votar neles mas lá no fundo, pensam como eles ou pelo menos toleram-nos e convidam-nos para almoçar.
Um cidadão matou, ao serviço do Estado, outro cidadão. Cuidado! Isso deve ser muito bem esclarecido! O resto é palha para "ventrulhas".


domingo, 20 de outubro de 2024

Comprem! Comprem! Leiam! Leiam!

Volto a publicar. Depois d "o bácoro que me persegue", "o homem que me persegue". 


Comprar um livro é fácil: 
reidosleittoes@gmail.com; 
o endereço do destinatário; 
12 euros incluindo os portes de correio;
pagamento no fim de recebida a encomenda na forma de "logo se vê", que é como quem diz, a combinar. 
encomendas às ninhadas tem desconto do iva.  
isto é o que se chama matar um bácoro e dois coelhos com uma cajadada - sim, porque entenderei a vossa correspondência como uma prenda.

Picado por próximos decidi um dia publicar sob o título “O bácoro que me persegue!". Teve tudo a ver com o blogue Rei dos Leittões, com o “material” que aqui tenho acumulado ao longo de anos e que estava à mão para se fazer uma publicação com acrescento de pouco trabalho.

Papel é papel, livro é livro e, se memória futura se deseja, tenho medo que um dia os discos magnéticos, a nuvem ou toda a internet, sejam atacados por uma doença informática e, dum momento para outro, horas de devaneios de escrita se evaporem no caos da atmosfera da sociedade da informação.

Sabia de antemão que não seria de esperar que quem já me conhece as crónicas se interessasse por aí além, que santos da casa, gordos de curiosidade, passassem pelos buracos das fechaduras, que leitores do José Rodrigues dos Santos ou do Nicholas Sparks, gente de redes sociais, se dessem ao trabalho de adquirir um livro de bacoradas.

Sabia também que de autores menores, as editoras não procuram os ganhos com as vendas, que serão sempre escassas em linha com a discrição da divulgação, mas usurpam o necessário lucro do bolso do próprio autor.

Sabia ainda que o que escrevo, que procuro sempre num verbo que cative quem pouco lê (quem muito lê tem mais que ler), não é nada que mereça ser de banca; que o linguarejar popular e a impudência, passados a escrita, podem desagradar a culturas mais sensíveis; que o amadorismo aprisiona a ficção ao autobiográfico e que a autobiografia só se tolera depois da fama.

Por fim, teimoso no que é meu, avesso à exposição pública, temeroso à microfonia, teimei que o livro só circularia em comércio clandestino ou na candonga.

E pronto, aqui estamos em prolongamento dessas linhas com mais umas bacoradas. Sempre me senti perseguido e, no mesmo alinhamento, depois dum “bácoro”, um “homem”, sendo que, não é para esconder: eu sou esse porco infante e esse homem sombra. Mordo-me sempre, não sei sair de mim e não sinto a mosca que pousou no nariz do camarada que está, em sentido, ao meu lado na parada.

Do bácoro-livro deixo três histórias que com ele se fizeram acontecer:
1- Da primeira vez a senhora dos correios nada estranhou, lá para a terceira ou quarta, começou a habituar-se mas, como as entregas se começassem a repetir e alguns vales de correio a levassem a perceber que se tratava de negócio, um dia, ao deparar-se com mais um despacho, largou-se com um comentário:
- Está a vender bem ao que parece!
- Desculpe, não percebi!?
- O livro, só pode ser um livro que anda a vender!
- Ah! Mais ou menos! - disse eu sorrindo.
- Sabe, há pacotes que denunciam o conteúdo mas mesmo assim nos aguçam a curiosidade.
Abri a pasta e perguntei-lhe:
- Quer um? Ofereço-lho!
- Muito obrigada por me matar a curiosidade.
 
2- O meu amigo Lúcio Mouco vende velharias na feira e conhece-me por eu lhe perguntar o preço de quase tudo e não lhe comprar quase nada. Vende torneiras avariadas, lavatórios rotos, louça rachada, puxadores ferrugentos, santos partidos, vinis riscados, vende tudo, até livros velhos. Propus-lhe então, ao meu alfarrabista, a venda pública e exclusiva dum exemplar. Ele aprontou-se. É simples, rasga-se a página que tem o ano, amarrota-se um pouco, massaja-se em farinha para lhe dar pó e, como tudo, pode dar venda. E vendeu o primeiro, o segundo, julgo que ainda por lá anda entre outros no caixote da especialidade.
 
3- Não esperava que quem já me conhecesse do que escrevo me fizesse apreciações elogiosas à obra de autor de livro único ou que desconhecidos me mandassem mensagens para expressar particular agrado pelo que leram. Não tive observações especiais ao seu conteúdo mas tive ao objeto, à capa e até ao tipo de papel. Também houve um que se descaiu com descarada sinceridade: "hoje em dia qualquer um já escreve um livro!".
Arreliado com estas reações? Não! Acho normais como conhecedor maior do meu papel, do meu lugar e dimensão! ...
 
Mas o comentário mais excêntrico foi dum amigo, que ao ver-se em mãos com o objeto fez a sua primeira crítica de satisfação:
- É grosso!...



quarta-feira, 16 de outubro de 2024

As filhas do resineiro


Entre o nascer do dia e o nascer do sol era vê-los, nos caminhos das raias dos pinhais, a penetrarem neles pelas encostas e trilhos conhecidos, até chegarem ao sítio onde, no fim de tarde anterior, tinham acabado, as três filhas, o pai e o Adriano. 

Nos tempos de outras tarefas da faina bastavam os dois homens para dar conta do recado mas, nesta fase mais intensa da campanha, em que o calor ajudava à sangria da resina, exigia-se o trabalho das mulheres para fazer a colha  e levar, à cabeça, as latas ao barril.

Distanciados uns dos outros conforme impunha a lida, para darem sinais da sua presença, para temperar o labor com alegria, elas cantavam e o Adriano assobiava, cada um do sítio do púcaro que tratava, ao passo que José Liberal, de poucas falas, limitava-se a aparecer no momento certo para gerir ou para dizer que “aquele ali já não é nosso” ou “é ali a estrema”.

Bem que o caráter do empregado o contentava, trabalhador, moço educado, comprovadamente poupado no dinheiro que lhe pagava, um genro a calhar para tomar conta duma delas e lhe dar descendência, tomar conta da exploração, matando ao mesmo tempo outros “coelhos” como o da reclamação de aumentos e o da ameaça de “pró ano já não venho”. Podia pagar-lhe mais, sabia, mas vistas as coisas de outro lado, quanto mais o futuro sogro amealhasse, mais o possível herdeiro se entusiasmaria para um acasalamento. Podia ser com a mais velha, mais calada, com a do meio, mais expedita, ou com a mais nova, mais espevitada.

Era um regalo vê-las cantar e o rapaz a assobiar mas, quando o José tentava uma abordagem camuflada sobre o assunto, Adriano parecia assobiar para o lado, revelando pouco interesse por quaisquer das três.

Até que num fim de temporada: “ti Zé qualquer dia chamam-me prá tropa!”, “ti Zé a gente nesta terra não se safa!”, “aumento-te rapaz, quanto queres mais?”, “se tu casasses, livravas-te da guerra!” e eis senão quando se percebe que Adriano se havia “despedido à francesa” conforme impunham os cuidados de quem passava a fronteira a salto.

Passados três meses teria de começar nova campanha e, em cima de lhe faltar um braço direito, vem-lhe a mais nova a dizer-se pejada, passadas mais três semanas vem-lhe a mais velha com a barriga inchada.

- Agora é que ele me tramou! Foi-se embora e…  Gaita! Já agora podia ter feito o mesmo às três! E também à mãe, eu já não digo nada!..

A mulher era apagada e não mudou de tom quando soube das filhas naquele estado e apagou-se de vez passados poucos anos. Curiosamente, José Liberal conformou-se heroicamente com o que lhe caiu à porta e lhe tocou a cara: isto da juventude andar nos matos tem destas coisas; sabia lá se as três se tinham enrolado a “desencarrrascar o pinheiro” ao desgraçado; sabia-se lá se ele partira sabendo o resultado; se tivesse sido só com uma faria cíumes nas outras duas, se tivesse vingado nas três, também era demais; as três que amanhassem a vida porque, com esta história de enganos, dificilmente lhe viriam homens; o rapaz que não regressasse porque em casa de cristã,o pecado por acaso, pode acontecer mas uma prole deve nascer dum só homem e duma só mulher.

José Liberal criou os dois netos como pai até chegar a vez deles irem também - para França não que por lá ainda deve andar o indesejado!
José Liberal foi pouco depois mas foi pró outro lado.

No almoço de angariação de fundos para o Rancho Folclórico do Pinhal Velho, lá estavam as três irmãs, já pensionistas, alegres como sempre e distintas como a vida as fez, reconhecidas e acarinhadas por todos os confraternizantes já esquecidos do escândalo, os dois filhos já com filhos e de férias, sinais de vida, da vida, do povo, dos tempos ou então apenas a lição que José Liberal deixou às suas gentes de como se encaram e ultrapassam certos problemas. 

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Uma família normal

Vanessa conhece-me ainda suficientemente bem para chegar ao café, aproximar-se de passagem da mesa que ocupo em solidão, espetar-me duas beijocas e fazer daquelas perguntas triviais do “então tudo bem?”, “onde é que estás?”, “que fazes?”, “casaste?” e mais duas ou três destas, intercaladas de respostas curtas e rematadas na minha simpatia anti-social com um “e tu?”
- Eu? Sou sempre a mesma! Vou sentar-me aqui ao lado com estas primas!...
Há muitos anos que não a revia. Tenho uma vaga ideia de na meninice chegarmos a brincar aos doutores e dela se ter adiantado na emancipação, por ser mulher, e lhe perder a proximidade. Saiu da terra, deve ter arrendado quarto na vila, falou-se dela, que andaria na passa, que dera em puta para sustentar o vício, uma desgraçada, enfim, comentários que a aldeia não perdoa a quem a rejeitar. Eu, sempre do contra, lembro-me de um dia lhe fazer defesa:
- Fosse eu mulher e teria o mesmo ofício, vendido ando eu a trabalhar no duro!
Vanessa, pela ausência, esqueceu e só me voltei a lembrar dela quando o António Variações saiu da tumba, na voz de outros cantores, a falar da filha de uma tal Maria Albertina. Coincidência, o único dia de agosto que dediquei à terra, Vanessa estar ali para rever as primas, na mesa ao lado, a debitar vivências com o seu conservado estilo, enquanto eu disfarçava o ouvido, com as folhas do Correio da Manhã da casa e um tinto já com pique, também da casa!
Contava ela – eram duas as atentas – as suas férias todas cinco estrelas, desde o hotel à praia, passando pelo tempo, a comida e a diversão. Vanessa contava de tal modo entusiasmada que deixava transparecer a ideia que o ponto alto do seu gozo não eram as vivências mas sim a oportunidade de as contar. E mais ali, em que as primas, a julgar pela pele, nunca deviam ter passado além da Nazaré, o efeito do seu relato era de ginjas.
Ficara muito barato, os quatro com comida e meia pensão – ela devia querer dizer dormida e não comida – com todos os spas, lençóis novos todos os dias e garçons falando português – percebi que o paraíso fora algures entre Quarteira e Vilamoura – ficara em não sei quantos euros.
O António só estava bem na rua, o Fernando a comer, o João a nadar.
O João gosta de marisco, o Fernando de estranhos, o António do mar.
O Fernando dormia à tardinha, o João à noite, o António de dia.
O João é de discoteca, o Fernando é de livros e o António é de bar.
O Fernando adorou, o António adorou, o João adorou.
- Tu adoras os três!...
Disse uma das primas. A conversa andou por aqui à volta e eu a pensar nas voltas da vida, com a Vanessa casada, dois filhos e férias de sonho…
- Prazer em ver-te João!
As três de saída e eu feliz com a Vanessa, a revivê-la na bacidez do tempo.
- Quanto é que devo Ti Etelvina?
- Está tudo pago!
- Quem?
- Foi essa cabra que acaba de sair! Vê lá o que fazes João, tu tens família!
- O quê?
- Então essa!!!... não regressou aqui ao fim de tantos anos com três homens?!…
- E então?! Fez família!…
- Quais família quais quê João! Ô da-se! Estou a dizer-te que vive com três homens ao mesmo tempo!
- Ôooo da-se! …
A Vanessa contou umas férias normais. Se for necessário continuarei a defender a Vanessa.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

À mesa do pensamento único

O jovem moderador formulou a sua opinião e perguntou ao jornalista velho se achava se era assim ou não. 

O jornalista velho concordou que era assim e acrescentou o suficiente para satisfazer o jovem moderador que passou a palavra à especialista de meia idade.

A especialista de meia idade disse concordar com tudo o que tinha ouvido e  acrescentou mais uma coisa que o jovem moderador aceitou e o levou a pedir o comentário do ex-ministro em exercicío.

O ex-ministro em exercício afirmou estar inteiramente de acordo com tudo o que foi dito e recordou as imagens que comprovavam isso, até que o jovem moderador disse:

- Vamos dar mais uma volta mas peço-vos que não entrem em debate nem acrescentem mais coisas porque o nosso tempo está a acabar.

O jornalista velho, a especialista de meia idade e o ex-ministro em exercício discordaram do jovem moderador e argumentaram com garras e dentes que o seu tempo não estava a acabar.

Para terminar, o jovem moderador, jornalista, especialista e futuro ministro,  explicou que tinha havido um equívoco com o "tempo" e disse: este é o nosso tempo, o tempo da informação, reparem que as armas duns só  acertam em soldados e não matam civis e as armas dos outros só matam civis e não acertam em soldados!

O espetador comum comeu que nem um parvo esta nova maravilha da tecnologia militar e amanhã vai assistir a um debate idêntico onde se discutirá aquela guerra onde uns são terroristas porque assim são chamados e os outros não são terroristas porque lhes chamam soldados.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Elogio póstumo

 Companheiro de águas passadas, perdemos a meada ao caminho da poesia. A poesia é o caminho dos condutores de palavras. Os júris falam da engenharia e da arquitetura das palavras, as palavras devem ser complicadas, de modo a serem só compreendidas por pessoas inteligentes e complicadas. Mas para nós, simples, os poemas teriam de ser como borboletas, teriam de nascer e morrer no mesmo dia e, assim, irrompiam de ti versos espontâneos a um ritmo que a escrita não podia acompanhar. Vinham aos jorros entre a espuma de cerveja nos teus lábios, muito menos pensados do que os das pessoas simples da terra que cantavam à desgarrada, enleavam-se no fumo dos charros e cigarros. Se fossem escritos perdiam o sentimento. Os versos eram donos e coisa do momento e, quando começavas a debitar o que sentias, o grupo inteiro se envolvia e até os poetofóbicos metiam no meio um verso ou uma palavra, de modo que de poesia de todos se tratava. Um verso era uma onda efémera que se formava da ventania dos nossos pensamentos e que desaparecia no areal do céu das nossas noites longas. Mais uma cerveja. Talvez mais um poema coletivo até que o homem de serviço dissesse que ali no café não se falava de política. Quando nós até dizíamos que faltava política à poesia e poesia à política. Depois, para que se adiasse o regresso às casas frias e pobres onde dormíamos, alongávamos o caminho pelo arrabalde e lá te vinha outra vez um ataque de poesia onde, na pausa certa, até o zé, que não sabia uma letra, metia uma farpa de poeta. E se acontecia a perturbação dos faróis dum carro na nossa direção, de certo conduzido por um velho, que não perceberia ponta dum chavelho das conspirações da juventude, muito menos de poesia, algum de nós haveria de ordenar:

- Apliquemos o velho truque, fingimos que estamos a mijar!...
Até que um dia, Egídio, farto da política sem poesia, decidiste passar-te. De anarquista passaste a usar fato e gravata, de republicano passaste-te a monarca e, como se não bastasse, o rei eras tu. Nova monarquia. O partido será fundado sobre o cadáver do rei. O motociclo de el-rei, chamavas tu à tua Casal 2.

Já nada sei de ti há muitos anos. Mas nestes tempos que nos vencem todos os dias, vem-me muitas vezes a força da tua esperança:
“Sei que perdi os mares e o império e a satisfação do momento
mas é preciso não esquecer o chilrear das aves que se amam ao nascer do sol”.



sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Depois do fogo apagado



O incêndio nascera por ali, ameaçara currais, casas e quintais mas já partira por montes e vales a caminho de outras aldeias e lugares. A meio da ladeira a vizinhança, que o enfrentou, palavreava, ainda com os olhos nos focos que resistiam em cepos, barrotes e restolhos, ainda entre o fumo e o cheiro que pairava. Ofegava ainda do duro combate que travara, aliviada pela vitória da salvação das casas e não se acanhava a identificar, culpas, causas, sentenças e soluções.

O octogenário ia ouvindo e pensando:
- A culpa é do aquecimento global! - sei lá o que é isso!
- A culpa é  dos eucaliptos! - nunca plantei um sequer!
- A culpa é de quem não corta o mato! - já não tenho forças para isso!
- A culpa é dos bombeiros! - coitadinho do meu neto que anda lá sem ganhar nada!
- A culpa é do governo! - votei sempre neles e neles votarei até à morte!
...
- A pena de morte tem de existir para os incendiários!

A octogenária apareceu e disse para o homem e para quem a quis ouvir:
- Mas que raio foste tu fazer para o palheiro com o cigarro na boca e a Penthouse na mão?

O octogenário desembaraçou-se da língua comprida da mulher e disse para quem o quis ouvir:
- Uma parte deste país é um imenso palheiro, a outra parte é uma imensa casa de putas de ambos os sexos.

E dito isto, toda a gente pôde concluir que a culpa tinha sido da mulher do octogenário.

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Explosão de varões

Os quartos da bateria de instrução tinham dez camas. Calhou-me por sorte de especialidade o último quarto onde sobravam sete camas vazias. Os outros dois recrutas não tinham formação superior e eram uns anos mais novos pelo que quem mandava no quarto oito era eu. De todos os restantes quartos vinham os rapazes de mais excessos, fumar, beber e comer de tudo e mais alguma coisa.

Um dia o meu amigo Cavalheiro, também companheiro de excessos de Coimbra, convidou-me para ir ver como era o quarto dele às dez da noite: um escrevia à namorada, outro lia a Gina, outro regressava da retrete, outro tinha a cabeça enfiada debaixo das mantas, outro engraxava as botas, outro comia bolachas, um estava apático e dois discutiam futebol.  A nossa entrada rompeu o ambiente e impôs-se pelo canto:

“Acorde sr prior! Acorde sr prior!

Acorde não durma tanto!

Nós já vimos da igreja! Nós já vimos da igreja!

Vamos para os Esprito Santo!”

Quando, à medida que entrámos na cantiga, começámos a bater com as mãos o ritmo nos armários, não esperávamos uma reação tão rápida dos camaradas. No espaço de alguns segundos, todos batiam o ritmo no que tinham à mão e cantavam com voz de soldados a inocente canção. Atrás da barulheira vieram de outros quartos, outros fazer coro e alinhar no forrobodó.

Todos já experimentámos momentos destes na vida em que inesperadamente se verifica uma explosão coletiva de franca alegria, aparentemente sem razão maior. São oportunidades raras em que uns se tornam atores e outros deixam de sê-lo, em que toda a gente exterioriza, participa, sem inibições, com satisfação plena e plena consciência que está a viver um momento único e inesquecível.

Estas manifestações não são completamente espontâneas, há sempre um ou mais provocadores que as fazem acontecer, seja num encontro, numa festa ou mesmo numa revolução.

É um momento destes que este pequeno filme documenta. E se há filme, não há necessidade de escrever, não precisareis de muitas palavras minhas para o interpretar, para o viver e para rir. 


(Vivi esta explosão no jantar do dia 1 de janeiro de 1992. A noite da Passagem de Ano tinha sido dura, não havia outra maneira de continuar a noite seguinte. Evitam de me procurar entre os convivas porque sou eu que estou a filmar)

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Tudo está consumado

Não voltaremos às praias quentes do sul nem voltaremos a dançar valsas no salão da associação.
Nunca mais chegaremos a casa de madrugada procurando em todas as gavetas um cigarro vivo.
Não voltaremos a descer a avenida grande, ditando palavras de ordem, nem nos colocaremos mais à frente do piquete de greve.
Os nossos corpos não tinham o direito de nos trair mas não traímos os nossos filhos como os nossos irmãos traíram os nossos pais. Olha ó que nós chegámos Emanuela, se falarmos de paz à mesa de Natal, sentiremos o poder de fogo daqueles que cresceram na mesma lareira do que nós! Por incrível que pareça esta é a maior tragédia das nossas vidas, maior que o ar de dor dos hospitais, maior que a cruel consciência de que o fim está atrás daquela nuvem em que nos fazemos transportar em cada dia. Afinal nunca fomos deles, nem eles dos nossos.
Valha-nos o termos lido o suficiente para aprender a tirar prazer da claridade, do silêncio das noites que não dormimos, dos nossos filhos que ainda nos pedem embalo ao berço. Mas o maior prazer que aprendemos juntos, foi a gostar dos dias chuvosos: 
- Que bom! Hoje não está nada bom para sair de casa!...
Há uma parte em que sempre encontrámos o equilíbrio, nunca foste tão desbocada como eu:
- Eu quero que eles se fodam! 
E se os vires a chorar quando eu morrer, a tecer elogios de crocodilo, manda foder a educação, manda-os foder!

sexta-feira, 5 de julho de 2024

À morte ninguém escapa


Tanto a minha mãe como o meu pai morreram prematuramente e, obviamente, eu fiquei orfão, também prematuramente! Portanto, de morte, já tenho o meu quinhão, embora tenha de reconhecer que, verdadeiramente, conhecedor do assunto só o serei tardiamente na minha hora, que acontecerá, espero, a partir deste preciso momento, num tempo que não me permitirá falar da minha experiência pessoal.

Na última semana morreram várias pessoas em Lisboa, no Alentejo, em Trás os Montes e, em Trás dos Matos, que é uma aldeia da freguesia de Vila Cã, ouvi dizer que também lá morreu um homem. Peso de modo igual a morte dessas pessoas mas mais a pesaria se alguma delas me fosse próxima. Não podem é acusar-me de frieza por não ir no embalo mediático das mortes da semana, de aqui-d ’el-rei  tens de chorar votos de pesar por nomes sonantes da arte ou da política, do desporto ou da fortuna, que me dizem tanto, enquanto mortos, como o senhor de nome provável José, natural de Trás dos Matos, que eu nunca conheci e de quem nunca ouvi falar. 

Na morte somos todos iguais, não é o que dizem? Pois saibam que não verto uma molécula de lágrima por alguém que nunca me tenha dirigido a palavra ou a simpatia, embora compreenda que alguns, em quem o poder da morte não é tão cérceo, sejam reconhecidos anonimamente pela sua arte, pela sua luta, pela sua destreza ou pela sua riqueza. Se o senhor José fazia esculturas de paus de louro, pertenceu à junta de Vila Cã, jogava bem à malha e deixou uma quantidade considerável de certificados de aforro, não vai ser por isso que eu o choro mais ou menos. Por isso, famosos, podereis ir morrendo que não perturbareis o meu santo sono diário e muito menos o eterno.

 Abaixo os funerais de estado e o panteão!

 Recordo uma cantilena que ouvi dos meus pais e que já passei aos meus filhos: 

À morte ninguém escapa, nem o rei, nem o cura, nem o papa. Mas hei de escapar eu! Tenho aqui um vintém, compro uma panela, meto-me dentro dela, tapo-me muito bem! Vem a morte não me vê. Bons dias meus senhores passem todos muito bem!

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Tomei partido por uma caixa de sapatos

Ela deve ter-se embeiçado por mim porque me ouviu cantar “Michelle, ma belle”, acompanhado à viola, no jardim municipal. E se eu cantava bem! Eu estava com uns colegas de propedêutico, num daqueles bancos de tábuas ripadas, a ensaiar os primeiros acordes dum sonho de vida musical e ela estava com umas amigas, num banco próximo, a exibirem brincadeiras e a atirar olhares para os nossos lados. Não as conhecíamos do liceu - rapariguinhas de pais do operariado que se estavam nas tintas para os estudos e queriam era namorar.

De partida os dois grupos cruzam-se e sinto um encontro de ombros dela, provavelmente provocado pelo empurrão dissimulado duma companheira, simuladamente inadvertido, e divergimos para lados opostos, com risos divertidos de juventude em idade de contacto.

No dia seguinte, repetida a canção, ela vem ter comigo pedindo-me desculpa pelo encontrão da véspera e pediu-me um cigarro, depois um beijo, depois mais beijos e assim fomos nascendo.
Navegando a novidade, uma tarde, sugeriu-me um centro de convívio do seu bairro. Não estava ninguém, entrava-se sem ser preciso chave. Uns sofás, uma mesa baixinha de sala de estar e umas damas. 
- Sabes jogar?

E eu, num "sim" de novato ali e acanhado, rendi-me à solução preliminar e colaborei com destreza no posicionamento das pedras no tabuleiro. 
Beber? Claro, beber faz parte do jogo! Tirar a carica. Pagar? 
- Vê aí os preços nesta folha e faz os trocos com o dinheiro que está nesta caixa de sapatos.
Que associação é esta!? Quem pode confiar assim? Até as caixas de esmola da igreja têm cadeado! Pensei.

Estendeu-me a garrafa e eu levei-a à boca e desajeitado com o momento, babei-me com a cerveja até ao umbigo, tombei o tabuleiro e só dei por mim quando a espuma já untava os corpos próximos, estendidos num leito de eu sei lá. A coisa dava-se e, quando num bater mais acelerado do coração, parei os olhos, vi uma foice e um martelo sobre um fundo vermelho.
-  Qual centro convívio qual carapuça, isto é um centro de trabalho!

Julgo que foi este aparte ou o tom com que me saiu que fez com que o estado de enamoramento não tivesse durado muito mais tempo. Passado um tempo e mais uns beijos e humidades, ela mudou de terra ou de partido, eu mudei de terra mas nunca perdi o encantamento pela gestão daquela caixa de sapatos.
E foi assim, que do borbulhar duma  efémera paixão, parti para a vida de quem toma partido para a vida toda.



quinta-feira, 20 de junho de 2024

O doutor Zé António

 O doutor é um poeta da palavra - das palavras!... O doutor dá melodia às palavras e os seus versos sabem a música. O doutor sabe muito. O leitor também tem de saber alguma coisa para entender a palavra - as palavras!... perceber e sentir a melodia e consumir os versos do doutor. 

Quem não sabe nada nem entende - quanto mais sentir! - as palavras "enversadas" do escritor - perdão! doutor - é o Zé António. O Zé António lê nas flores o canto da próxima colheita, conhece cada ave pela melodia do assobio, sacia-se com a sonoridade da água que sussurra numa queda do regato, fala com a ovelha mãe e desabafa sentimentos com o vizinho meio  doutor. 

E o vizinho, que tem livros em casa, desiste de ler e bebe um copo com o Zé António para ver se aprende a olhar para as flores, a conhecer os pássaros pelo que cantam, a avaliar a água que acrescentaram ao vinho e a conhecer cada ovelha pelo seu olhar.

E no fim do copo, tão pequeno como a conversa, o Zé António a rematar:

- Pá! Não penses mais nisso! Tás cum olhar que parece o do meu carneiro mor! Isso há de passar! A mim disse-me que eu vou morrer mas não sabe quando! O doutor sabe pouco!